SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O MP-BA (Ministério Público da Bahia) enviou recomendações contrárias aos planos de uma empresa chinesa de instalar uma base de criação e melhoramento genético de jumentos na cidade de Amargosa, município baiano.
Segundo o MP, a proposta poderia resultar no abate sistemático dos animais, sem o devido controle institucional, ambiental e sanitário. O objetivo seria fornecer peles para a produção do ejiao -substância obtida a partir do colágeno extraído da pele desses animais, valorizada na medicina tradicional chinesa por supostos benefícios à saúde, como no tratamento de menstruação irregular, anemia, insônia e impotência sexual. Não há comprovação científica sobre sua eficácia, de acordo com especialistas.
O protocolo previa “introduzir tecnologias avançadas,” como sêmen congelado de jumento chinês e oferecer treinamento técnico pago a empresas de criação de jumentos.
Em nota, a Prefeitura de Amargosa afirma que atua em cooperação com os órgãos de controle e as instâncias jurídicas competentes, e que todos os acordos firmados pelo município “são precedidos de avaliação técnica e jurídica, assegurando conformidade com a legislação vigente e respaldo institucional”.
Ainda segundo a prefeitura, qualquer iniciativa futura com frigoríficos só poderá ser considerada se atender previamente a requisitos como licenciamento ambiental válido, aprovação da CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança) em caso de tecnologias de melhoramento genético e cumprimento das normas de bem-estar animal, bem como da legislação ambiental federal e estadual.
“A prefeitura reitera que não realiza nem participa de atividades de abate de animais e que todas as ações da administração são guiadas pelo princípio da legalidade, da sustentabilidade e do respeito socioambiental”, diz o órgão.
O município de Amargosa abriga o maior fornecedor do país de peles e carne de jumentos para a Ásia. Também na Bahia estão concentrados os três frigoríficos habilitados pelo SIF (Serviço de Inspeção Federal) para o abate legal dessa espécie no Brasil.
Especialistas em bem-estar animal e direito ambiental alertam para o risco de o projeto de cooperação acelerar a extinção do jumento nordestino, cuja população já encolheu mais de 90% nas últimas três décadas. Dados do Mapa (Ministério da Agricultura e Pecuária) mostram que, nos anos 1990, o país tinha mais de um milhão de jumentos. Hoje, restam cerca de 6% desse total.
O professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP (Universidade de São Paulo) Adroaldo Zanella diz que o abate de jumentos é uma atividade extrativista. Ao contrário da pecuária bovina ou de aves, onde há um domínio de todas as fases de criação, no caso dos jumentos, os animais são retirados do ambiente natural e abatidos, sem um ciclo de produção controlado.
“Até o final desta década os jumentos nordestinos vão desaparecer. Junto com o seu desaparecimento vai também a seleção natural de características genéticas únicas, desenvolvidas em um ambiente muito relevante aos desafios climáticos que assolam a humanidade. Ou seja, estamos descartando algo que pouco conhecemos”, diz o especialista.
A bióloga Patricia Tatemoto, PhD em medicina veterinária e porta-voz da organização britânica The Donkey Sanctuary no Brasil, ressalta que a fisiologia dos jumentos não permite uma produção intensiva.
“A gestação dura de 11 a 12 meses, e até que o animal esteja pronto para o abate pode levar até três anos. Por isso, em todos os países onde essa atividade ocorre, ela é de natureza extrativista, gerando ônus sanitário, reputacional e ético”, afirma a especialista.
Além do Brasil, a exploração da espécie também é significativa na África. Patrícia diz que, em vários países africanos, os jumentos já foram considerados extintos em comunidades locais, o que trouxe impactos sociais relevantes, já que esses animais desempenham funções como transporte de água, mantimentos e até de levar crianças à escola.
Patrícia diz que em casos em que o jumento é furtado para o abastecimento de comércio de peles é comum que crianças, especialmente meninas, tenham que deixar de ir à escola para auxiliar em atividades que seriam realizadas com a ajuda do animal.
Os especialistas também vêem impactos ambientais e sanitários. “O transporte sem controle cria riscos enormes de disseminação de doenças pelo fato de que os animais não têm rastreabilidade e, pela forma como vivem, podem abrigar agentes que colocam em risco a saúde de animais e humanos, como anemia infecciosa e mormo”, diz Adroaldo.
O professor diz que o jumento nordestino deve ser tratado como um patrimônio genético único do semiárido. Para ele, a proposta de ampliar o abate para atender ao mercado internacional “é um atentado contra a cultura nordestina, contra o Nordeste e contra o Brasil”.
Patrícia Tatemoto também destaca que o jumento nordestino apresenta um genoma que não existe em nenhum outro lugar do mundo. “É uma espécie totalmente diferente das demais, e essa informação genética é especialmente relevante em uma época de crise climática”, diz.
Ela afirma que já existem pesquisas em andamento para produzir o colágeno em biorreatores, de forma ética, sustentável e sem os impactos ambientais do abate animal, e que os estudos sobre esse tema deveriam ser reforçados.
Em 2021, o TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) manteve a legalidade dos abates de jumentos, mesmo após pedidos de proibição. Um ano depois, porém, o mesmo tribunal proibiu a prática em todo o país, alegando risco sanitário e ameaça à sobrevivência da espécie.
Mesmo com a segunda decisão, os abates continuaram acontecendo. Frigoríficos defendem que a primeira decisão ainda vale, enquanto ONGs e entidades de proteção animal afirmam que deve prevalecer a segunda. Segundo o advogado Yuri Fernandes Lima, especialista em direito animal, foi protocolado um novo recurso para que o tribunal esclareça qual decisão está em vigor.