CURITIBA, PR (FOLHAPRESS) – O aterro sanitário que recebe o lixo de Curitiba e outras 25 cidades da região quase entrou em colapso no início deste ano. Sem autorização do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) para cortar 9,9 hectares de vegetação no local, o aterro não teria mais condição de receber o lixo produzido diariamente por cerca de 3 milhões de pessoas.
O caso foi parar nas mãos de um juiz federal, que, em seu despacho, afirmou estar diante de uma “escolha trágica”, entre a necessidade de ampliação do aterro, sob o risco de uma calamidade pública, e a proteção da vegetação remanescente de mata atlântica e dos animais.
A decisão judicial foi favorável à empresa Estre Ambiental, dona do aterro contratado pelo consórcio dos municípios, mas o episódio expôs desafios complexos, especialmente para a capital paranaense, responsável por 62% do volume de lixo que chega ao local.
Sem a ampliação do espaço, a chamada “vida útil” do aterro terminaria já em março deste ano, mas a supressão da vegetação não resolveu definitivamente o problema. A ampliação emergencial só deu mais 6 anos de atividade no local, o que tem pressionado as administrações na busca por soluções.
Cercada de mananciais na região norte, Curitiba não tem um leque amplo de alternativas para áreas de aterro. Um estudo do Conresol, o consórcio que reúne os 26 municípios da região, concluiu que todos os aterros existentes em um raio de até 300 quilômetros da capital teriam capacidade para, juntos, atender apenas 18% do total do resíduo gerado hoje.
O aterro da Estre fica na cidade de Fazenda Rio Grande, distante cerca de 30 quilômetros de Curitiba, e recebe mais de 2.600 toneladas de lixo por dia.
Agora, o consórcio corre para reduzir a dependência de aterro, tentando colocar em prática o que já estava previsto na própria Política Nacional de Resíduos Sólidos, de 2010. O documento define que o aterro deveria ser a última opção na escala de destinação de resíduos, depois de esgotadas todas as possibilidades de tratamento.
“Pensando na realidade de muitos municípios que ainda têm lixão, ter um aterro já é um avanço, mas não deixa de ser um passivo ambiental. Então, a ideia é sair da dependência de aterro com o uso de tecnologias de tratamento de resíduos”, afirma a secretária do Meio Ambiente em Curitiba, Marilza Dias.
“Isso nada mais é do que cumprir a legislação nacional, que diz que o aterro deve receber o rejeito do tratamento do resíduo, e não o resíduo bruto”, reconhece.
Com o aproveitamento do lixo, a ideia também é reduzir o volume de material que chega no aterro e esticar a vida útil dele, que já tem dois maciços com mais de dez camadas de resíduos depositados a vegetação ficava entre os dois maciços, formando um corredor verde.
O próprio consórcio estabeleceu uma meta. Até 2030, a intenção é reduzir em 50% a destinação do resíduo bruto que hoje vai para o aterro. Até 2050, 90%.
Segundo Marilza, somente o resíduo orgânico que poderia virar compostagem, por exemplo representa mais de 50% do lixo que chega ao aterro. Há outros tipos de resíduos, incluindo um volume estimado de 20% de lixo que podia ter sido reciclado, mas não foi separado previamente e acabou misturado com o lixo comum.
Em Curitiba, a coleta do material separado pela população para reciclagem é entregue para 50 associações de catadores, que fazem uma triagem.
A principal aposta do consórcio para atingir a meta é contratar empresas interessadas em fazer o aproveitamento dos resíduos com tecnologia própria. Um edital de credenciamento já está aberto para receber as propostas.
A própria Prefeitura de Curitiba tenta consolidar uma cadeia de destino de resíduo voltada à produção de CDRU (Combustível Derivado do Resíduo Urbano) para cimenteiras.
Em 2018, Curitiba assinou uma parceria com a ABCP (Associação Brasileira de Cimentos Portland) para entregar resíduos a três cimenteiras da região, a Supremo, que fica em Adrianópolis, a Itambé, em Bolsa Nova, e a Votorantim, em Rio Branco do Sul.
O resíduo entregue às empresas é parte do material que as associações de catadores de recicláveis por algum motivo não conseguiram aproveitar e acabava seguindo para o aterro.
“Tem material que não dá nem para compostagem nem para reciclar. Fica ali entre o orgânico e o reciclável, um pedaço de madeira, um trapo. Isso serve para produzir CDRU, que substitui o coque de petróleo das cimenteiras”, explica a secretária.
“O coque de petróleo é o combustível pior que existe no mundo e a indústria cimenteira hoje é considerada a mais poluente”, afirma ela.
A Estre pretende se credenciar no edital de aproveitamento de resíduo, cadastrando um projeto que eles batizaram de “biotúnel”, e que também é voltado para produção de CDRU para cimenteiras. O equipamento tem tecnologia importada da Itália e vai funcionar como uma peneira, capaz de retirar a umidade do material.
O biotúnel será instalado na área do próprio aterro, ao lado da estação de tratamento de chorume. A obra ainda não começou, mas a Estre diz que o primeiro módulo do equipamento entra em operação em 2027 com capacidade para tratar 750 toneladas por dia.
“Com o biotúnel, parte do lixo que hoje chega aqui vai primeiro para uma seleção mecânica, onde tem um rasgador de saco mecanizado, passa por uma peneira rotativa, para tirar os materiais mais grossos, e depois vai para a biosecagem, para tirar a parte orgânica, a umidade do material”, explica Antonio Carvalho, diretor comercial da Estre.
A parte orgânica vai para túneis, com controle de temperatura e oxigênio. “Fica 16 dias lá e as bactérias se alimentam de tudo. Você elimina o orgânico”, afirma ele. O restante é material seco, com poder calorífico, que na sequência é triturado. “E isso pode alimentar forno de cimento, pode fornecer para a indústria para o uso de caldeira, para gerar vapor”, diz Carvalho.
“Com o biotúnel vai ser o seguinte: 33% vira CDRU; 33% evapora porque é água ou orgânico, e aí as bactérias resolvem o problema; e os outros 33% do rejeito vai para o aterro, que é o material grosseiro, que não tem o que fazer”, resume ele.
Segundo Carvalho, a tecnologia italiana já foi testada em um projeto piloto, por um ano, no aterro que a empresa tem em Ribeirão Preto (SP). O projeto do biotúnel também está previsto no aterro de Araraquara (SP), onde a Estre ganhou em 2024 uma concessão de 30 anos.
PRECISAMOS GERAR MENOS LIXO TAMBÉM, DIZ PROFESSOR
Miguel Mansur Aisse, professor no programa de Pós-Graduação em Engenharia de Recursos Hídricos e Ambiental da UFPR (Universidade Federal do Paraná), defende que a sociedade também faça um esforço de redução de lixo gerado.
“Não temos praticado a minimização das embalagens e isso também vem do comércio, vem da indústria”, diz.
“A gente leva muito papel, muito plástico, muito isopor para dentro de casa. Estamos produzindo muito resíduo. A separação do lixo para aproveitamento e tratamento é uma segunda etapa, e a primeira etapa é a redução do consumo, um comportamento que vem da educação ambiental, com propaganda massiva do poder público”, afirma Aisse.
O professor também chama atenção para o desafio brasileiro, em que mais de 30% dos municípios não têm aterro e ainda exibem lixões a céu aberto.
“Pode não parecer, mas o aterro é uma obra complexa, que pressupõe proteção do entorno, das águas, do solo, das pessoas, confinamento das emissões. E ele tem que ser operável em todas as épocas do ano, secas ou muito molhadas”, diz o professor.
“Os lixões às vezes são uma tentativa de aterro que acabou mal executada. Começa como aterro e gradativamente se transforma em um lixão. O aterro exige um cuidado diário. Ele é local de disposição final de resíduo e um processo biológico ao mesmo tempo”, afirma. “Acho que o desafio brasileiro ainda é erradicar os lixões”, diz Aisse.
Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgados no ano passado apontam que, em 2023, 31,9% dos municípios brasileiros ainda usavam lixões a céu aberto e 18,7% tinham “aterro controlado”, que, como o nome sugere, apresenta algum nível de gestão dos resíduos, mas não garante total adequação às recomendações ambientais. Já o aterro sanitário estava presente em 28,6% das cidades.