SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Conhecido por transformar objetos cotidianos descartados em grandes instalações escultóricas que refletem sobre questões políticas, sociais e raciais, o artista Nari Ward está presente em São Paulo com projetos univitelinos gerados a partir de um período na cidade. Faz parte do rol de selecionados para a 36ª Bienal de São Paulo e, em paralelo, está em cartaz até 11 de outubro na galeria Continua.

As duas instalações do jamaicano-americano, nome de destaque na cena contemporânea, cruzam histórias esquecidas e geografias improváveis, entre Japão, Brasil e Jamaica.

Na galeria, “Spring Notes” é a mostra individual inaugural de Ward no Brasil, mas não a primeira vez que ele expõe obras inéditas na capital. Em 2024, criou uma instalação que foi destaque em “Ancestral: Afro-Américas”, exposição de artistas afrodescendentes que ocupou o Museu de Arte Brasileira da Faap, a Fundação Armando Álvares Penteado.

Contudo, seu primeiro contato com São Paulo aconteceu em 1998, quando o Sesc Pompeia abrigou a parada brasileira de “O Limite da Consciência”, exposição global itinerante idealizada para comemorar o cinquentenário da Organização Mundial da Saúde na qual havia a remontagem de uma obra já existente do artista, “Amazing Grace”, criada originalmente por ele no início dos anos 1990.

“Um momento curioso pois, durante uma semana, não saí dos quarteirões entre o hotel e o prédio do Sesc. Foi estimulante, mas não podia dizer que realmente conheci São Paulo quando me perguntavam sobre a cidade”, diz o artista, em tom bem-humorado, numa conversa na galeria Continua.

Quase 30 anos depois, agora com tempo para explorar São Paulo em um período de três semanas dedicado à criação das instalações, o artista pôde entender a mescla de culturas paulistana. O estalo da criação começou em visita à Liberdade, quando Ward compreendeu a narrativa do bairro, o fluxo de descendentes japoneses e a sua importância histórica para a população negra.

“Fiquei profundamente interessado nessas realidades e na ideia das histórias esquecidas que precisam ser trazidas ao centro. Quis fazer a triangulação desses lugares —Jamaica, onde nasci, São Paulo, para onde fui trazido, e o Japão, cuja presença ali é tão marcante”, diz.

Parte da ligação veio de uma lembrança de infância —a obsessão nipônica pelo Blue Mountain, variedade de café cultivada nas montanhas da sua terra natal. “É um dos mais caros do mundo, e grande parte da demanda vem do Japão. O encontro entre Jamaica e Japão é também um encontro comercial —e a Liberdade tem essa energia do comércio muito presente.”

Outro fio condutor foi sua visita à Capela dos Aflitos e o contato com a devoção popular à figura de Chaguinhas, militar negro enforcado em 1821 após motim contra a Coroa portuguesa por melhores salários.

“A história da capela é muito potente, ainda mais vendo as pessoas deixarem pedidos a ele até hoje. Esse gesto me fascinou. É um ritual simples, mas poderoso, que fala sobre fé e resistência invisível”, afirma. Uma série de múltiplos, doada pelo artista e pela galeria, tem o objetivo de arrecadar fundos para a reforma do prédio da capela, construída no século 18.

Ward gravou por cinco horas o interior da igreja, durante a noite, para a parte sonora da instalação da Bienal de São Paulo, batizada de “Spring Seed”. A obra replica um típico soundsystem jamaicano sob uma estrutura de molas de colchão pintadas de roxo.

A cor é referência ao “velatio”, costume católico de cobrir imagens e crucifixos com um pano roxo durante a Quaresma. As molas, matéria recorrente no seu repertório e que apareceram no trabalho no museu da Faap, são protagonistas também na galeria. “Gosto de usar aquilo que as pessoas não olham, mas que estrutura a vida cotidiana.”

Se, na Bienal, em consonância com o tema da mostra —que reflete sobre a humanidade—, os símbolos do artista olham para uma perspectiva global, na mostra na galeria a instalação tem foco local. Ferros de passar descartados convivem com tecidos mundanos, manchados de café e cachaça, e objetos simbólicos, como cabaças e garrafas, escondidos sob sacos de estopa.

Para ele, que prefere deixar a interpretação para o observador, o ato de embrulhar é uma forma de dar poder. “Esconder não é só ocultar. É transformar em algo que exige imaginação do espectador. Quero que as pessoas vejam esses materiais comuns em uma nova perspectiva. Que percebam que eles importam e podem ser centrais em uma história”, afirma, satisfeito com o resultado da busca de artefatos tão característicos da cidade, um exercício de improviso.

“Cada dia era guiado por surpresas, pressões, ansiedades. Isso moldou todas as decisões. Essa experiência só poderia ter acontecido em São Paulo.”

NARI WARD

– Quando Até 11 de outubro na Galeria Continua e até 11 de janeiro na Bienal de São Paulo

– Onde Galeria Continua – r. Piauí, 844, São Paulo. Bienal de São Paulo – Pavilhão da Bienal, parque do Ibirapuera, s/nº