RENNES, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Quando o repórter chega ao asilo no interior da Normandia onde Bernard Boursicot mora há 17 anos, ele já está esperando sentado do lado de fora, aproveitando o sol fraco do fim de verão. “Nunca morei tanto tempo no mesmo lugar”, conta. Este senhor de 81 anos, barba e cabelos há algum tempo sem ver tesoura, foi o pivô de um dos mais curiosos escândalos de espionagem da Guerra Fria.

Boursicot foi preso em 1983, acusado de vazar segredos franceses na China maoista, onde serviu nos anos 1960 e 1970. O que fez a fama do caso é que ele foi seduzido por um cantor de ópera chinês que se fez passar por mulher, com tanto êxito que o convenceu até de ter tido um filho dele.

Hoje Boursicot não se incomoda em narrar sua história –que rendeu uma peça premiada, um best-seller (“Liaison”, da jornalista americana Joyce Wadler) e um filme de Hollywood, “M. Butterfly” (1993), de David Cronenberg, estrelado por Jeremy Irons. O título é referência à ópera “Madame Butterfly”, de Puccini, história trágica de amor entre um ocidental e uma oriental.

À mesa do refeitório do asilo, o ex-espião às vezes divaga, entremeia os relatos com piadas de diplomata (“Um dia Stálin foi ao gulag e perguntou a um prisioneiro…”), mas lembra com riqueza de detalhes o que viveu.

Na adolescência, Boursicot sonhava com uma vida de aventuras. Escrevia cartas para seu ídolo, Fernand Fournier-Aubry (1901-1972), francês que, em livros hoje esquecidos, descrevia suas peripécias em selvas tropicais repletas de nativas fogosas, que nunca resistiam ao charme de “Don Fernando”.

A diplomacia parecia um caminho para essa vida de sonho. Boursicot pleiteou o Brasil, mas, diante da falta de vagas, aceitou um posto na embaixada francesa na China, em 1964. Em uma festa para diplomatas, fez amizade com um cantor da Ópera de Pequim, de aparência delicada, chamado Shi Peipu.

Um ano depois, Boursicot recebeu uma carta de Don Fernando convidando-o a encontrá-lo na Amazônia. Quando informou a Shi sua intenção de trocar a China pelo Brasil, o amigo fez uma confidência surpreendente: disse ser, na verdade, uma mulher, criada como homem desde o nascimento. Tudo, supostamente, para enganar a avó paterna, que ameaçava separar filho e nora caso não lhe dessem um neto do sexo masculino.

O relato mirabolante comoveu Boursicot. De amigos, passaram a amantes. Aos 22 anos, Boursicot já tinha experiências sexuais tanto com mulheres quanto com homens. A dúvida é inevitável: durante o sexo, Boursicot não percebia a diferença? Segundo ele, Shi nunca se despia totalmente e fazia questão de penumbra. “Ele tinha um talento para fazer acreditar em tudo.”

Quanto à penetração, o chinês demonstraria anos depois aos investigadores franceses como retraía os testículos para dentro da virilha e ocultava o pênis flácido, fazendo a bolsa escrotal vazia simular os lábios vaginais.

A reportagem pergunta: não teria sido mais simples Shi Peipu tentar seduzi-lo com uma proposta homossexual? “Não. Nessa época eu recusava qualquer relação homossexual. Jeremy Irons também me perguntou: ‘Você já não era gay antes?’ Mas só depois é que eu me liberei.”

Pouco antes de Boursicot deixar Pequim, Shi anunciou estar grávida. Mesmo assim, o francês embarcou para o Brasil no início de 1966. Recomendado por amigos, foi recebido por Niomar Moniz Sodré Bittencourt (1916-2003), dona do jornal Correio da Manhã e criadora do Museu de Arte Moderna do Rio.

Ele conta que também chegou a se hospedar no apartamento de um ex-assistente de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), em Copacabana. Colunas sociais dos jornais cariocas da época se referem a ele como um “poeta francês” em uma viagem sociológica de estudos.

Antes de se embrenhar na Amazônia, com 130 quilos de bagagem (“queria ficar pelo resto da vida”), Boursicot passou pelas maiores cidades brasileiras. “Gostei muito do Brasil”, recorda. “Em São Paulo, fiquei em uma casa ao lado da avenida Paulista, fui ao zoológico das serpentes.”

Um dia, relata, teve “um pesadelo incrível”: Shi dizia que estava sofrendo. A China estava, então, em plena Revolução Cultural, período de atroz repressão política. Temendo por Shi, Boursicot decidiu voltar a Pequim. “De Manaus a Belém eram três dias de barco. Dormi em um colchão de forragem, embaixo das redes dos índios.”

Só em 1969 Boursicot conseguiu retornar à embaixada na China. Localizou Shi morando com a mãe em Pequim. O suposto filho, a quem ele deu o nome de Bertrand, estaria escondido no interior, para não despertar suspeitas do regime.

Foi nessa época que Boursicot começou a colaborar com os chineses. Acreditava que assim o deixariam continuar encontrando Shi -que estaria a salvo, assim como o filho, dos expurgos de Mao. O francês subtraía documentos de sua embaixada para serem copiados pelos agentes comunistas.

Nos anos seguintes, Boursicot serviu em vários países, entre eles a Mongólia, de onde também forneceu informações aos chineses. Aproveitava idas a Pequim para visitar Shi -que em 1973 finalmente lhe apresentou Bertrand. O francês conta que acreditou enxergar seus traços no menino de sete anos.

O objetivo de Boursicot passou a ser levar Shi e o menino para morarem com ele em Paris -mesmo já vivendo um relacionamento estável com um estudante francês chamado Thierry, que conheceu durante uma caminhada noturna às margens do rio Sena.

Em 1982, Shi Peipu e Bertrand conseguiram finalmente vistos para a França. Instalaram-se no apartamento onde Boursicot vivia com Thierry. Os quatro se entenderam surpreendentemente bem, sem ciúmes. Apresentando-se em público como homem, Shi conquistou certa notoriedade em Paris, chegando a cantar na televisão.

Tudo desmoronou em junho de 1983. Boursicot e Shi foram presos em Paris, por espionagem. Interrogado, o francês disse ter feito tudo pelo amor de Shi e do filho. Foi surpreendido, então, quando os agentes lhe revelaram que Shi nunca tinha sido mulher.

De início, ele relutou em acreditar, mas um dia os dois foram postos na mesma cela. Boursicot pediu, e Shi mostrou-lhe a verdade. Exames confirmaram ainda que Bertrand não era filho biológico de nenhum dos dois -teria sido vendido ao regime por uma família pobre da etnia uigur. Segundo Boursicot, Bertrand até hoje vive em Paris, onde trabalha em um centro cultural, e os dois não se falam há muito tempo.

O caso fez a alegria da imprensa francesa durante alguns meses. Condenados a seis anos de prisão, Boursicot e Shi receberam o perdão presidencial em 1987 de François Mitterrand (1916-1996) e tomaram rumos separados. O chinês continuou na França até sua morte, em 2009.

Boursicot voltou a morar com Thierry, vivendo da pensão de ex-diplomata e, enquanto o dinheiro durou, dos direitos pela venda de sua história. Em 1999, ele visitou de novo o Brasil, junto com o companheiro -que morreu em 2001, em decorrência de Aids, segundo ele. “Tive uma forte depressão. Não foi fácil. Mas me reergui assim mesmo.”

Em 2008, Boursicot sofreu um derrame, e a família o internou no asilo onde ele recebeu a Folha de S.Paulo. Em seu quarto modesto, poucas lembranças visíveis das aventuras passadas: alguns livros sobre a China, um álbum de fotografias. A reportagem pergunta a Boursicot qual foi o grande amor de sua vida. “Thierry”, responde apenas.

Na saída do asilo, um cartaz alerta os visitantes para que não deixem os moradores saírem. Mas ninguém impede Boursicot de acompanhar o repórter até o estacionamento. Ao se despedir, ele não resiste a contar uma última piada: “Um padre perguntou para outro: ‘Será que algum dia vamos ver o fim do celibato?’ ‘Nós não, mas nossos filhos, sim.'”