RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – O parque estadual Cristalino 2, uma das unidades de conservação mais importantes e sensíveis da amazônia mato-grossense, enfrenta uma crise que combina pressões jurídicas e ambientais.
Criado em 2001, por decreto estadual, para proteger florestas primárias, corredeiras, cachoeiras e sítios arqueológicos no chamado arco do desmatamento, o parque ocupa terras públicas destinadas à preservação. Mas há mais de uma década sofre com ocupações irregulares e tentativas de anulação de sua criação.
Em 6 de agosto de 2025, a fazenda Handú, no município de Novo Mundo, foi palco de uma inspeção judicial acompanhada pela Sema-MT (Secretaria Estadual de Meio Ambiente).
A Folha de S.Paulo teve acesso ao Termo de Inspeção Judicial, que detalha a presença de atividades agropecuárias de cerca de 30 anos, incluindo cercas, pastagens, pista de pouso, energia elétrica, casas de funcionários, barracões, escola com 40 crianças, currais e implementos agrícolas.
O sobrevoo por helicóptero e o percurso por terra foram realizados com a participação de autoridades estaduais e do pecuarista Antônio José Junqueira Vilela Filho, tratado no documento como proprietário da área.
Conhecido como AJ Vilela, ele tem histórico de crimes ambientais. Em 2024, foi condenado pela Justiça Federal a pagar R$ 1,2 milhão por desmatamento de 134 hectares em Altamira (PA), segundo o Ministério Público Federal, e responde a outros processos ligados à devastação da amazônia.
A disputa judicial em torno do Cristalino 2 começou em 2011, quando a Sociedade Comercial e Agropecuária Triângulo contestou o decreto de criação da unidade. À época, a companhia era representada judicialmente por Vilela Filho, que outorgou procuração aos advogados responsáveis pelo processo.
A companhia alega que não foram feitos estudos técnicos nem consulta pública, como prevê a lei do Snuc (Sistema Nacional de Unidades de Conservação). Apesar de decisões favoráveis à empresa, recursos e falhas processuais mantiveram o parque.
Procurado, o advogado Renato Maurílio Lopes, que o representa, disse que Vilela Filho ocupa legalmente a fazenda Handú desde 1992, com desmate autorizado pelo Ibama em 1994, antes da criação do parque.
Segundo ele, nunca houve indenização pela área, que hoje gera centenas de empregos e milhões em impostos. A defesa ainda classificou como “absurda” a condenação por desmate no Pará, afirmando que não há provas de autoria e que recursos ainda aguardam julgamento.
A inspeção ocorreu sem representantes da AGU (Advocacia-Geral da União) e do MPF (Ministério Público Federal), que reivindicam participação nas negociações sobre o futuro do parque.
Em nota, a AGU criticou a condução do ato e alertou para riscos de nulidade processual, já que a União tem interesse direto no caso. O órgão também citou histórico de descumprimento de um termo de ajuste de conduta na fazenda Handú. O MPF não respondeu até a publicação.
Enquanto a disputa segue, os ataques ambientais se intensificam. Dados da rede ambiental Observa-MT, indicam que, de 2019 a agosto de 2025, o parque perdeu 29 mil hectares para o fogo, sendo 14.800 apenas em 2024, equivalente a 11% da unidade. No mês passado, outro incêndio destruiu 1.178 hectares.
“A cada movimentação no processo, fica clara a fragilidade da manutenção do parque, sobretudo diante da flexibilização do Judiciário e do estado. Nesses momentos, verifica-se um aumento das agressões à unidade de conservação”, alerta Edilene Amaral, consultora jurídica do Observa-MT.
A rede Pró-UC (Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação) também critica a inspeção e lembra que a área foi cedida pela União a Mato Grosso com a condição de uso para conservação.
“Foi feito sobrevoo por helicóptero e percurso por terra e, com base nisso, perceberam atividade agropecuária de 30 anos. Mas a União tem interesse na área, que foi doada ao estado com condição de uso para conservação ambiental. AGU e MPF têm petições no processo ainda não apreciadas”, explica a rede.
Segundo dados da Pró-UC, o histórico da unidade indica fragilidade diante de decisões judiciais: em 2022, erro processual que anulou o decreto de criação permitiu que mais de 87% de um imóvel rural em bom estado de conservação fosse desmatado e incendiado por mais de um mês, sem ação efetiva da Sema-MT.
Ainda de acordo com a rede, solicitações de mineração na área cresceram 126%, e autorizações provisórias de funcionamento foram concedidas para propriedades dentro do parque. Após a retomada do processo, gestores apresentaram proposta de redução de mais de 40 mil hectares da área protegida.
Para ambientalistas, essas lacunas refletem o risco crescente à unidade. “O que os poderes sinalizam é um movimento contrário, no sentido de alterar a proteção. O parque existe, as normas continuam vigentes, mas decisões recentes indicam fragilidade”, alerta Edilene Amaral.
Tentativas de contato da Folha de S.Paulo com o Tribunal de Justiça de Mato Grosso, o MPF e a Secretaria de Meio Ambiente do estado não tiveram resposta. A Comissão Nacional de Soluções Fundiárias do CNJ informou que o caso não chegou à análise federal.