SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nos fundos de uma casa num condomínio de alto padrão em Mogi das Cruzes, na região metropolitana de São Paulo, a Polícia Federal encontrou em dezembro um laboratório rudimentar e pioneiro na produção de drogas sintéticas de alta potência.
Segundo a investigação, foi o primeiro no Brasil que trabalhava com a aplicação do nitazeno um opioide com efeito centenas de vezes maior do que a morfina e outras substâncias, e maior risco de overdose.
Porções de folhas vegetais trituradas eram dispostas no piso de azulejo de um dos cômodos, sobre uma lona de plástico preta, onde a substância era borrifada. Os policiais encontraram maconha, crack, solventes químicos, máscaras de gás com proteção para os olhos e respirador com filtro, uma balança de precisão, maços de dinheiro e “anotações detalhadas sobre a produção de entorpecentes”.
Um quilo e meio de nitazeno, um pó de cor bege, foi apreendido. Outros quatro pacotes de droga haviam sido interceptados nos Correios, tanto por empresas de transporte internacional quanto pela própria PF. O casal que morava na casa Raphael Antônio Marino Costa, 39, e uma mulher de 33 anos foi preso em flagrante.
As encomendas vinham de Hong Kong, na China, e chegavam a endereços ligados ao casal na cidade de São Paulo, segundo a investigação. Num período de seis meses, eles importaram mais de três quilos de nitazeno, diz a acusação do Ministério Público Federal. Somando-se o que foi interceptado em trânsito e encontrado na casa, o total equivale a metade de todas as apreensões desse tipo de substância pela PF no ano de 2023.
Em maio, a mesma investigação levou a prisão de outros três suspeitos, acusados de receber as drogas e revendê-las ao menos parte das provas foram encontradas em trocas de mensagens de celular. A Folha conversou por telefone e enviou mensagem ao advogado de Marino Costa, que preferiu não se manifestar sobre as acusações.
Os próprios traficantes teriam cedido à potência da droga. Dois advogados que atuam no caso disseram à reportagem que os próprios réus ficaram viciados na substância que manipulavam.
A defesa de Marino Costa pediu, inclusive, a substituição da prisão preventiva (sem prazo) por internação em clínica de recuperação para dependentes químicos. O pedido foi recusado. Ele, a mulher e os revendedores ainda não foram julgados.
Se comparada à circulação de cocaína, crack e maconha, a quantidade apreendida de nitazeno pode parecer pequena. No entanto, o que preocupa autoridades em todo o mundo é o impacto na saúde, o potencial viciante e a tendência de alta.
Sintetizados pela primeira vez na década de 1950 por empresas farmacêuticas, interessadas no seu potencial analgésico, os nitazenos são tão potentes que nunca tiveram aprovação para serem comercializados.
Após ficar décadas esquecido, um nitazeno foi identificado pelo Centro de Monitoramento Europeu de Drogas numa amostra biológica pela primeira vez em 2019. Desde então, num período de quatro anos, foram registradas mais de 200 overdoses envolvendo a substância na Europa e na América do Norte. Pesquisadores dizem que o número é subestimado, pois muitos laboratórios não têm capacidade de identificar a droga.
Segundo autoridades e pesquisadores, é provável que clientes consumam nitazenos sem saber. No Brasil, em apreensões da PF e da Polícia Civil de São Paulo, a substância já foi detectada misturada com canabinoides sintéticos conhecidos como drogas k ou “spice” e aplicada em vegetais secos, para ser fumada como cigarro.
“Assim como outros opioides, os nitazenos apresentam um elevado risco de causar depressão do sistema nervoso central e respiratório, bem como parada cardíaca”, diz um relatório publicado em janeiro pelo Ministério da Justiça e pelo Unodc (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes). “Pode provocar tontura, náusea, vômito, desorientação, perda de consciência e convulsões.”
O mesmo documento pontua que, apesar de o Brasil não registrar grande circulação de opioides ilícitos nem crescimento epidêmico como há na América do Norte, “observa-se um aumento gradual de nitazenos, o que exige monitoramento constante e proativo”.
Como a lista de novas drogas sintéticas cresce rapidamente, o Governo Federal passou a estimular que Polícias Técnico-Científicas e laboratórios especializados passem a procurar por novas substâncias quando analisam as apreensões da polícia e informem uma rede de instituições por meio do SAR (Sistema de Alertas Rápidos).
Quando se identifica uma nova droga, um alerta é disparado para todos os órgãos na rede. O governo federal também promete investir na compra de novos equipamentos para os laboratórios.
Em agosto, o sistema divulgou um alerta sobre os nitazenos, com orientações sobre riscos, sinais de intoxicação e medidas de prevenção. Uma nova variação dessa classe de entorpecente o n-pirrolidino protonitazeno foi identificada pela primeira vez no país neste ano nos exames de um paciente que afirmou ter ingerido bebida alcoólica e um comprimido.
“Ainda não é preocupante como um fenômeno de segurança pública no país, porque a gente não vê [drogas sintéticas] em larga escala, as ocorrências são pontuais”, afirmou a secretária nacional de Políticas sobre Drogas e Gestão de Ativos, Marta Machado. “Mas é claro que é um ponto de atenção, e de monitoramento, diante dessa tendência mundial de aumento mesmo de circulação de novas substâncias.”
De acordo com o delegado Carlos César Castiglioni, do Denarc (Departamento de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico) de São Paulo, traficantes adicionam novos ingredientes e testam novas fórmulas com frequência nos laboratórios clandestinos de drogas sintéticas. “É diferente do lança-perfume caseiro, que tem uma fórmula básica. Com as drogas k, por ser algo novo, os caras vão testando. Se não tem clorofórmio, éter, ele usa outra coisa.”
Um mapeamento nacional das drogas sintéticas está sendo feito no Centro de Informação e Assistência Toxicológica (Ciatox) de Campinas, ligado à Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Os pesquisadores têm ido a festas de grande porte e coletado amostras de saliva dos frequentadores para saber quais drogas mais circulam nas ruas.
Há uma lista de mais de 400 substâncias que o laboratório consegue identificar. Num projeto paralelo, em parcerias com diferentes departamentos de polícia, o mesmo Ciatox também estuda como identificar novas substâncias e seus efeitos no corpo humano.
Para José Luiz da Costa, professor de toxicologia e coordenador-executivo do Ciatox, isso pode ajudar inclusive no atendimento médico a quem faz uso abusivo sem saber o que está consumindo. “A intoxicação por uma droga sintética pode ser muito parecida com [a intoxicação por] cocaína, por exemplo, e aquilo fica subnotificado. No serviço de emergência, a gente precisa saber qual é a substância e saber muito rápido.”