GADO BRAVO, PB (FOLHAPRESS) – Com apenas 8.000 habitantes, a cidade de Gado Bravo, no interior da Paraíba, há anos atrai a atenção de pesquisadores em razão de uma particularidade: uma incidência de deficiência auditiva maior do que a média brasileira e mundial.
Quase 200 km distante de João Pessoa, pouco populosa e com forte concentração de moradores na zona rural, o município registra muitos casamentos entre pessoas aparentadas, o que aumenta a chance de nascimento de crianças com doenças genéticas, como a síndrome de Usher.
A doença genética rara causa uma combinação de deficiência auditiva e perda progressiva de visão. Na média mundial, costuma afetar 1 a cada 6.000 habitantes. Em Gado Bravo, atinge 1 a cada 364 moradores, segundo identificou um estudo da UFPB (Universidade Federal da Paraíba) no fim da década de 1990.
A descoberta dos pesquisadores mobilizou a cidade, já que a conclusão da maior incidência da síndrome confrontou a resistência de muitas famílias que se negavam a reconhecer a deficiência auditiva dos filhos. Em 2001, o município abriu uma escola exclusiva para surdos –na época, a segunda da Paraíba.
Ao longo dos anos, no entanto, diante do pequeno número de moradores e também da relutância das famílias em admitir que os filhos tinham a síndrome, a escola foi perdendo alunos. Chegou a ter apenas quatro matriculados, com idades entre 6 e 22 anos, que estudavam na mesma sala.
Em 2023, o município decidiu fechar a escola e iniciar uma nova estratégia: transformar as unidades regulares da cidade para receber esses alunos.
“As famílias têm vergonha ou medo de admitir que os filhos podem ter a síndrome, então negam os sinais da surdez. Muitas vezes, preferiam deixar os filhos em casa, sem estudar, do que ter que buscar a escola para surdos e admitir a deficiência”, conta Ernestina de Santana, 50, intérprete e professora de libras da cidade.
No ano seguinte, o município foi selecionado para integrar o projeto Alavancas para a Educação Inclusiva de Qualidade, promovido pelo Instituto Rodrigo Mendes com apoio do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social). A partir de então, começou a construção de uma política para desenvolver nas escolas da cidade uma educação especial inclusiva.
A nova estratégia segue o que prevê a legislação brasileira e tratados internacionais, como a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, de assegurar meios para que as escolas regulares estejam preparadas para garantir o desenvolvimento acadêmico, social e emocional de todos os alunos, independentemente da deficiência.
Assim, em vez de os alunos surdos ficarem segregados em uma escola, eles passariam a frequentar as aulas junto com os demais, contando com o apoio de professores e intérpretes de libras. Os outros docentes também seriam capacitados para a aprender a língua de sinais.
Nem todos os pais e professores aprovaram a mudança na época. As famílias tinham receio de que os filhos pudessem sofrer discriminação e bullying, e os professores temiam ficar ainda mais sobrecarregados com a nova demanda.
Artur Araújo, 10, foi um dos alunos que saíram da escola para surdos. Ele estudava lá desde os 6 anos sem nunca ter tido em sua sala outra criança da mesma idade.
Apesar do receio dos pais de que o menino pudesse sofrer algum tipo de preconceito, agora ele tem com quem jogar futebol, brincar no recreio e até mesmo aprendeu a tocar instrumentos musicais –a caixa é o seu favorito.
“Eu não queria que ele mudasse de escola, tinha muito medo que as outras crianças pudessem machucá-lo ou zombar dele, mas ele adorou e se adaptou muito rápido. Ele ainda não aprendeu a ler e escrever, como os outros alunos da turma, mas vejo que ele está muito mais feliz”, conta a mãe, Joselaine Araújo.
Para Arthur de Sousa, 11, a entrada na escola regular foi mais difícil. Ele é um dos casos em que a família demorou a aceitar a deficiência auditiva e rejeitava a ideia de que ele fosse estudar em qualquer tipo de colégio.
Ele começou a frequentar a creche aos 3 anos, mas, como tinha dificuldade de se comunicar com as demais crianças por não ouvir nem falar, ele passou a ter um comportamento agressivo.
“A mãe então decidiu que era melhor tirá-lo da escola, mas também não procurou identificar o que ele tinha. Então, ele ficou anos isolado em casa”, conta Vagnaldo Leite, 33, professor de libras que também tem deficiência auditiva.
Pela pressão de assistentes sociais da cidade, a mãe passou a levá-lo alguns dias para as aulas na escola de surdos, mas sem regularidade. Foi só depois do fechamento dessa unidade que a família foi convencida de que o menino precisava frequentar as aulas.
Um ano depois, Arthur já consegue se comunicar em libras, assiste às aulas junto com os demais colegas com a ajuda de um intérprete e está começando a aprender a ler e escrever.
“Não sei se ele está aprendendo como deveria e fico com medo de os outros alunos o provocarem, mas ele gosta da escola. Ele gosta porque pode jogar futebol com os outros meninos, essa é a paixão dele”, diz a mãe, Maria Gorete da Silva, 43.
Para Rafael Lima, 35, vice-diretor da escola, o maior desafio para tornar a unidade mais inclusiva tem sido convencer os pais de que as crianças com deficiência devem se integrar aos demais.
“A situação tem melhorado, mas as famílias ainda têm muito medo e vergonha de assumir a deficiência. Havia aqui na cidade um costume de esconder e isolar quem é surdo, nós estamos tentando mudar isso. É um processo demorado, mas para essas crianças que estão aqui já há avanços mesmo com todos os desafios”, diz.
A estratégia também fez com que o município desse mais atenção também a outros tipos de deficiência. Todas as escolas municipais passaram por reformas de acessibilidade, por exemplo, com a instalação de rampas, corrimões e piso com sinalização tátil.
Com isso, outras crianças e adolescentes que estavam fora da escola começaram a estudar. É o caso de Rafaela Barbosa, que tem paralisia cerebral e só passou a ir para a escola neste ano, aos 16.
“Eu achava que era impossível ela estudar, como eu iria trazê-la para a escola todos os dias? Agora, o transporte escolar vai buscá-la em casa todos os dias, tem uma cuidadora que fica com ela durante todas as aulas e o intervalo”, conta a mãe Adriana da Silva, 44, moradora da zona rural da cidade.
O projeto Alavancas selecionou dez municípios do país para desenvolver a política de educação especial inclusiva. Em todos, houve cursos de formação para os professores e funcionários das escolas, além de apoio pedagógico e financeiro para as reformas necessárias.