FLORIANÓPOLIS, SC (FOLHAPRESS) – É de manhã. Uma nuvem negra vem em direção à cidade. As folhas das árvores dançam. É preciso tomar decisões. Levar casaco? Parece estar frio. E o guarda-chuva? Tem cara de que choverá.

Pela primeira vez, cientistas conseguiram mapear a atividade cerebral completa durante momentos de decisão em camundongos.

Os dados obtidos acabam por ir de encontro à ideia de somente algumas regiões do cérebro envolvidas em decidir. No estudo com os roedores, observaram que o processo acontece em 279 partes -ou 95%- do cérebro. Os resultados foram publicadas em dois artigos recentes na revista Nature.

Uma das conclusões é que os roedores decidiam com base em expectativas. No experimento, os animais eram colocados diante de uma tela com uma luz que alternava entre os lados direito e esquerdo. Então, o bicho deveria girar uma roda em direção à luminosidade para receber recompensas. No entanto, em alguns momentos, a luz era fraquíssima, e o roedor precisava adivinhar para qual lado girar.

É mais ou menos o processo que faz humanos levarem o guarda-chuva esperando que vá chover.

O mapeamento mostrou que expectativas são trabalhadas para além da região cognitiva, incluindo as sensoriais e as motoras. O processo decisório baseado em probabilidades foi encontrado até no tálamo –o primeiro ponto de retransmissão dos estímulos visuais.

Para os pesquisadores, a informação corrobora a tese de que o cérebro é uma grande máquina preditora. Eles notaram sinais de preditibilidade de escolhas baseada em decisões anteriores. Essas ações dependem mais da última, porém acompanham a tendência das cinco ou seis anteriores.

A esquizofrenia e o autismo, aliás, poderiam ser melhor compreendidas a partir desse fluxo, considerando o papel das expectativas nessas condições.

O professor de fisiologia da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), John Araújo, que não participou do estudo, diz que os resultados podem dar pistas para entender melhor as patologias. “Esses indivíduos têm dificuldade de representar mentalmente o que é agradável ou não. O esquizofrênico tende a ter tomada de decisão mais abrupta. Enquanto com o indivíduo com autismo é o inverso”, explica.

O mapa mostra 75 mil neurônios se acendendo em diferentes etapas da tomada de decisão dos roedores. A imagem resultante do cérebro lembra uma galáxia, pontos de luz por todos os cantos.

Ao todo, foram 621,7 mil neurônios de 139 ratos registrados. “O que há de incomum em nossa abordagem é que esse mapa foi feito com medições de neurônios individuais usando eletrofisiologia”, diz a neurocientista da Universidade da Califórnia em Los Angeles Anne Churchland, uma das autoras dos dois artigos, que segue com a pesquisa, agora analisando o espectro autista.

Ela explica que outros métodos, como a ressonância magnética cerebral, também permitem ver todo o cérebro. Mas a técnica mede o fluxo sanguíneo, que “é muito pequeno e lento”. Acontece que as sinapses são velozes, e captar essa dinâmica de comunicação intercelular era a chave para os pesquisadores compreenderem a interação entre diferentes partes do cérebro.

A eletrofisiologia, porém, é limitada, argumenta a pesquisadora. “É possível colocar os eletrodos no cérebro humano e coletar os mesmos resultados. Porém, é antiético. E é por isso que as oportunidades para testar em humanos são raras, como quando alguém é submetido à cirurgia cerebral e autoriza o mapeamento”, diz Churchland.

O processo de revisão por pares dos artigos levou dois anos. Para Araújo, isso demonstra a consistência da pesquisa.

O estudo foi coordenado pelo IBL (International Brain Laboratory, Laboratório Internacional do Cérebro, em português) e envolveu mais de 20 instituições.

Neurocientistas de diferentes universidades da Europa e dos Estados Unidos trabalharam em 12 laboratórios. “Se trabalharmos juntos através das fronteiras internacionais, podemos realizar tarefas grandes e complexas que seriam impossíveis de executar sozinhos. Caso o meu laboratório estivesse trabalhando isoladamente, não teríamos conseguido, porque não tínhamos pessoal suficiente para fazer medições nessa escala”, afirma Churchland.

Com apoio das fundações Wellcome e Simons, o IBL foi fundado em 2017 com ideias para a neurociência que se assemelham à organização do Cern -um dos o principais centros de física de partículas, que mantém relações com pesquisadores de todo o globo, inclusive do Brasil.

A pesquisa também teve financiamento do Instituto Nacional de Saúde dos EUA (NIH, na sigla em inglês). A instituição tem sofrido cortes ao longo da gestão Trump.

“Espero que nosso trabalho demonstre que esse tipo de apoio, tanto de fundações quanto de organizações nacionais, pode permitir a realização de novos experimentos científicos que, de outra forma, não seriam possíveis. Espero que no futuro haja apoio para a nossa ciência e também para outras iniciativas científicas, de modo a tornar isso viável”, conclui Churchland.