RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – O mais recente relatório de Elisa Morgera, relatora especial das Nações Unidas para Mudanças Climáticas e Direitos Humanos, foi lançado no início de julho, em Genebra. O documento detalha os impactos dos combustíveis fósseis e argumenta que sua eliminação da economia faz parte dos deveres dos Estados para garantir os direitos humanos.
“Apenas com o direito internacional dos direitos humanos -sem nem sequer precisar recorrer ao Acordo de Paris ou a outras fontes do direito internacional- temos o dever de eliminar gradualmente os combustíveis fósseis”, diz Morgera, em entrevista à Folha de S.Paulo.
“Existem obrigações legais suficientemente vinculantes que explicam por que os Estados devem agir, para o bem de todos nós e de nosso bem-estar.”
A relatora defende sanções contra quem dissemina desinformação sobre a crise climática , a proibição da atuação de lobistas e da publicidade da indústria fóssil.
Morgera, que celebra a decisão histórica da Corte Internacional de Justiça sobre o dever dos Estados de prevenir danos ao clima, também comemorou, junto com outros especialistas da ONU, os vetos do presidente Lula (PT) ao projeto de lei que altera o licenciamento ambiental no Brasil.
Ela participa também do Balanço Ético Global (BES, na sigla em inglês), iniciativa do governo brasileiro para a escuta sobre a crise climática.
Segundo ela, o BES oferece uma alternativa aos espaços tradicionais de negociação, criando encontros com diversidade de perfis de pessoas diretamente afetadas pelas mudanças no clima.
“Espero que a presidência brasileira incorpore as ideias deste processo entre suas prioridades para a COP30”, diz.
PERGUNTA – Na sua visão, a UNFCCC (braço climático da ONU) está distante ou integrada à agenda de direitos humanos promovida por outras partes do sistema da ONU?
ELISA MORGERA – Mesmo que o Acordo de Paris traga referências a direitos humanos, na prática não temos visto uma integração das conclusões e normas. Há mais de 15 anos existem esforços para que a natureza seja considerada de forma mais ampla dentro do regime climático, algo essencial para a proteção dos direitos humanos.
Esse isolamento em relação a outras partes da ONU tem sido muito problemático e difícil de ser enfrentado tanto de fora quanto de dentro do sistema. Dois pareceres consultivos recentes [da Corte Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Internacional de Justiça] mostram claramente não só as obrigações jurídicas, mas também a lógica interna do direito internacional, que é interconectada por natureza.
P. – No seu mais recente relatório, a senhora propõe que os maiores emissores concluam a eliminação dos combustíveis fósseis até 2030. Como tornar essa meta viável?
EM – Não estamos começando do zero. Alguns desses países fizeram progresso. A eliminação do carvão já aconteceu em alguns lugares. As fontes renováveis hoje são a opção mais acessível e mais barata. Há condições muito relevantes para tornar essa transição viável.
Meu relatório mostra que, do ponto de vista jurídico, as evidências não poderiam ser mais claras. Por isso o relatório se chama um imperativo. Não há outro caminho para nos proteger.
P. – A senhora diz que a “desfossilização” não significa apenas abandonar os combustíveis fósseis na matriz energética, mas também erradicá-los da mídia e da produção de conhecimento. O que exatamente quer dizer com isso?
EM – Por muitas décadas, a indústria de combustíveis fósseis impediu que o público tomasse consciência de que são a principal causa das mudanças climáticas e de que eliminá-los é a medida de mitigação climática mais significativa.
Estivemos cercados por falta de informação ou por desinformação, e isso foi resultado de uma estratégia muito bem financiada e construída ao longo de décadas, que continua nos mantendo no escuro.
P. – Entre as suas recomendações estão a proibição da publicidade de empresas de combustíveis fósseis, a restrição de seu lobby político e a criminalização do greenwashing e da desinformação. Quais caminhos práticos para implementar dessas medidas?
EM – Banir a publicidade é algo bastante prático. Isso já foi feito, por exemplo, na cidade de Haia, e outras cidades estão considerando a mesma medida. Temos visto parcerias com o mercado publicitário, associações de jornalistas e meios de comunicação que estão trabalhando juntos para ajudar a “desfossilizar” o nosso conhecimento, ou seja, contribuir com informações significativas sobre a crise climática e a importância de eliminar os combustíveis fósseis.
Precisamos de uma regulação rigorosa. Essas empresas têm capacidade de mobilizar muito dinheiro para continuar promovendo greenwashing. Existe a obrigação dos Estados e das empresas estatais, vinculadas diretamente ao direito internacional, de garantir o acesso à informação mais precisa e confiável como parte da proteção dos direitos humanos no contexto da crise climática.
P. – O que a senhora diria a autoridades brasileiras que defendem a exploração de petróleo, inclusive numa região sensível como a Foz do Amazonas, alegando que isso é essencial para financiar a transição energética?
EM – O argumento financeiro não se sustenta quando analisado com atenção. As empresas de combustíveis fósseis têm lucros exorbitantes em muitos países principalmente porque são isentas de impostos em vários contextos, recebem incentivos fiscais e muitas vezes não pagam todos os tributos que devem.
Elas se beneficiam da falta de transparência das transações financeiras. Esses recursos poderiam ser usados não só para a transição energética, mas para apoiar trabalhadores da indústria e cobrir custos de saúde relacionados aos impactos das mudanças climáticas, da poluição do ar e da poluição plástica.
Além disso, existem subsídios diretos à produção de combustíveis fósseis, que chegam à ordem de bilhões de dólares, valores que poderiam ser investidos na ação climática, em energias renováveis, em adaptação climática e em proteção social.
Pouca gente sabe, mas existem negociações em andamento na ONU sobre uma Convenção sobre Tributação, voltada a reforçar a justiça fiscal.
P. – Além do que a senhora já colocou, como esse processo de transição justa pode ser financiado?
EM – De certa forma, trata-se de redefinir prioridades nos orçamentos públicos, direcionando investimentos para a transição energética e para populações que ainda não têm acesso à energia, ou que lutam para cobrir despesas básicas, incluindo o alto custo da energia.
Além disso, os impactos provocados pelas enchentes, pelas ondas de calor extremas, pelas perdas na infraestrutura e sobre a saúde das pessoas, tudo isso é pago com dinheiro público.
No entanto, os custos deveriam ser assumidos pelas empresas, proporcionalmente ao quanto contribuíram para a crise climática.
Já existem metodologias que demonstram vínculos diretos entre a indústria de combustíveis fósseis e eventos extremos específicos. Fora disso, temos exemplos muito interessantes ao redor do mundo de como as empresas podem ser responsabilizadas financeiramente.
Um desses exemplos são os super fundos climáticos, que obrigam essas empresas a depositar, antecipadamente, uma porcentagem de seus lucros em um fundo que possa ser usado para ações de mitigação e adaptação climática.
Outra proposta é a taxação dos super-ricos, alguns vinculados à indústria fóssil ou a atividades associadas a ela.
P. – De acordo com a Agência Internacional de Energia, a demanda por minerais críticos pode triplicar até 2030 e quadruplicar até 2040. Algumas pessoas defendem os minerais críticos como essenciais para a segurança energética e como parte do crescimento do Brasil. Qual a sua avaliação?
EM – Esse será justamente o tema do meu próximo relatório, que será publicado antes da COP30. É verdade que, atualmente, tecnologias como a eólica e a solar dependem de minerais críticos, mas essa corrida, baseada nessas projeções de demanda, precisa ser questionada.
Primeiro, porque essas estimativas muitas vezes reúnem diferentes usos dos minerais críticos, não apenas os relacionados à transição justa. Elas incluem usos militares ou em tecnologias da informação. Além disso, essas projeções não levam em conta o avanço tecnológico. Pode ser que já não precisemos de tanto quanto se estimava, especialmente à medida que migramos, por exemplo, de baterias de lítio para outras tecnologias.
P. – A senhora defende que, na ausência de um acordo robusto sobre a eliminação dos combustíveis fósseis na COP30, o secretário-geral da ONU deveria convocar um processo com ampla participação social. Como isso funcionaria?
EM – Estou preparando uma proposta sobre isso. Acredito que um caminho seria criar um fórum que reúna tanto atores estatais quanto não estatais.
Um espaço onde possamos partilhar como os esforços da eliminação de combustíveis fósseis estão avançando, o que podemos aprender e acompanhar quem não está avançando.
Um fórum como este precisa colocar no centro as vozes que têm sido excluídas dos processos de decisão climática, especialmente as comunidades na linha de frente que vivem diariamente com as consequências da inação.
Raio-X | Elisa Morgera, 48
Nascida em 1977, em Trieste, Itália. É relatora especial da ONU sobre a promoção e proteção dos direitos humanos no contexto das mudanças climáticas. É professora de direito ambiental global na Universidade de Strathclyde, em Glasgow, no Reino Unido, e professora na Universidade da Finlândia Oriental.