SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um mistério de quase 50 anos que assombrava a música popular brasileira teve desfecho na última sexta-feira (12), quando a Justiça argentina informou à embaixada do Brasil em Buenos Aires que havia, por fim, identificado o corpo do pianista Francisco Tenório Cerqueira Júnior, o Tenório Jr..

Ele acompanhava Vinicius de Moraes numa turnê pelo Uruguai e pela Argentina com o baixista Azeitona, o baterista Mutinho e Toquinho no violão, poucos dias antes do golpe militar de 1976.

Na madrugada de 18 de março de 1976, após um show na renomada casa de espetáculos Gran Rex, na avenida Corrientes, Tenorinho, como era chamado carinhosamente por Vinicius, teria deixado um bilhete para Toquinho, com quem dividia um quarto no Hotel Normandie, no centro de Buenos Aires, dizendo que sairia para comprar cigarros e um lanche. Nunca mais voltou, e seu corpo jamais foi encontrado.

O corpo que agora se atribui ao músico foi identificado por meio de impressões digitais. As de Tenório Jr. estavam em dois órgãos diferentes dedicados a buscas de pessoas desaparecidas durante a ditadura. Um cotejamento das informações feito apenas recentemente permitiu a identificação do pianista.

Agora, a investigação será encaminhada à renomada Equipe Argentino de Antropología Forense, criada para identificar restos mortais dos mais de 20 mil desaparecidos da ditadura argentina, mas que se especializou posteriormente em trabalhos de identificação reconhecidos em vários países do mundo. O objetivo agora é definir como o músico foi assassinado.

Os restos de Tenório Jr. foram encontrados na interseção entre a avenida General Belgrano e a Panamericana, na província de Buenos Aires. Segundo a Justiça, a morte teria ocorrido em 20 de março de 1976, ou seja, apenas dois dias depois de seu sequestro.

“É uma descoberta para a história de uma família, da música brasileira e das ditaduras: a argentina, que cometeu o crime, e a brasileira, que o encobriu. Cinquenta anos depois, Tenório revive”, diz Ruy Castro, colunista da Folha de S.Paulo.

“É uma notícia surpreendente, quando já não tínhamos esperança de saber mais nada. De certo modo, dá um fechamento a essa história tão triste”, diz Marta Rodríguez Santamaría, que foi a oitava e penúltima mulher de Vinicius de Moraes e, na época do desaparecimento do músico, ajudou-o a percorrer embaixadas, delegacias e a entrar em contato com juízes.

“Triste pensar hoje que, em todas aquelas semanas em que Vinicius passou na Argentina buscando ajuda para encontrar o amigo, ele já estava morto”, diz Santamaría.

Várias especulações rondaram o caso todos esses anos. A mais aceita era a de que o músico teria sido confundido com algum “subversivo” por sua aparência -naquela época, ter cabelos compridos, como boa parte dos artistas tinha, era sinal de desobediência em relação ao sistema.

O golpe militar na Argentina ocorreu em 24 de março, mas já nas semanas anteriores havia repressão militar e busca por opositores. Tenório pode ter sido confundido com um líder montonero, guerrilha que resistiria ao regime, que estaria circulando na zona. Segundo essa hipótese, ele teria sido levado a uma delegacia na rua Lavalle. Ali, apesar de identificar-se como brasileiro e sem saber falar espanhol corretamente, teria sido espancado e morto.

Outras hipóteses circularam na época. Uma delas dizia que, em vez de buscar cigarros e algo de comer, Tenório estivesse buscando drogas. Não muda a crueldade do crime, mas era comum, segundo o historiador Uki Goñi, que naquele tempo houvesse “batidas” na região central da cidade, onde tradicionalmente se vendiam drogas.

Uma terceira versão considerava que Tenório estaria na companhia da amante, e que a necessidade de encobrir esse “affair” teria complicado as investigações.

Embora a morte encerre um ciclo, muitas perguntas permanecem. Por que o músico foi espancado até a morte, se não era uma figura relacionada à militância política ou a pessoa que a polícia buscava? O caso será reaberto para entender o que ocorreu na delegacia da rua Lavalle? Quem ordenou sua morte? Como se comportaram os diplomatas brasileiros ante o desaparecimento? Na época, o Brasil já vivia seus anos de chumbo e colaborava com os vizinhos na busca por subversivos.

Nascido em 4 de julho de 1941, em Laranjeiras, no Rio de Janeiro, Tenório Jr. cresceu entre o estímulo artístico e o rigor acadêmico. Filho de Alcinda Lourenço Cerqueira e do delegado Francisco Tenório Cerqueira, foi aluno de Moacir Santos e integrante do grupo instrumental Os Cobras, composto por ele, José Carlos, o Zezinho, Paulo Moura, Meirelles, Raul de Souza, Hamilton e Milton Banana.

Pianista talentoso, ele se destacou pelo improviso nos gêneros sambajazz e bossajazz na década de 1960, quando a música instrumental brasileira era muito popular. Começou as jams sessions do Little Club aos 21 anos, em Copacabana, no beco das Garrafas, formado por quatro clubes -Little Club, Bottle’s, Baccará e Ma Griffe-, onde todos os grandes nomes da bossa tocavam. Participou de festivais internacionais, aos 22 anos, como o Jazz (La Costa), em Mar del Plata, cidade costeira argentina na província de Buenos Aires.

Aos 23 anos, gravou a convite dos diretores da gravadora RGE, José Scatena e Benil Santos, o LP “Embalo”, lançado em 1964. Foram 11 músicas gravadas com Paulo Moura, Raul de Souza, Zezinho Alves, Milton Banana e Rubens Bassini, entre fevereiro e março de 1964, e posteriormente lançadas em 2004 num CD.

Foi no Bottle’s que Tenório conheceu o argentino saxofonista Hector Costita, que convidou para participar do Embalo. “Na época foi um projeto vanguardista. Muito para frente. Vendo o estilo que ele fazia e a ideia do disco, ele era uma pessoa muito à frente de sua época”, diz Hector, que acrescenta ter ouvido outra versão sobre o desaparecimento do pianista -segundo a qual ele teria fugido com uma argentina, proprietária de terras, criadora de cavalos, que o teria levado para o pampa argentino.

Para o estudioso da música e colunista da Folha Ruy Castro, em depoimento dado em 2023, “Tenório Jr. era o melhor pianista de seu tempo, genial e moderno”. Esteve acompanhado de diversos músicos de renome e tocou com Edu Lobo, Nana Caymmi –que afirmava que Tenório foi um dos maiores pianista do país–, Chico Buarque, Gal Costa, Nelson Angelo, Milton Nascimento, Egberto Gismonti, Johnny Alf e Joyce Moreno.

Toquinho e Vinicius foram os últimos a estar no palco com ele. Joyce Moreno chegou a substituir Toquinho no violão nos shows com Vinicius, nas turnês para a região do rio da Plata. A compositora, cantora e instrumentista Joyce Moreno conheceu Tenório entre os anos 1972 e 1974, quando ele tocava com os mineiros Lô Borges, Milton Nascimento e Beto Guedes.

“Eu adorava tocar com ele. Teve uma turnê que fizemos que Tenório foi para a Argentina já com o Vinicius. Eu substituí Toquinho. Formei um trio –eu no violão, Maurício Maestro no baixo e Rubinho Moreira na bateria. Fizemos shows nos cassinos de Punta del Este. Quando vamos para Montevidéu e Buenos Aires, chega Edu Lobo. Em 1975, Edu introduziu Tenório, já que ele queria um pianista. Foi neste momento que Vinicius se afeiçoou ao Tenório e o convidou para participar de seus shows.”

A reportagem também ouviu o baterista Tutty Moreno. “Tenório aparentava ser manso, mas tinha um humor muito ácido e personalidade forte.”

Joyce Moreno afirma que o pianista era uma pessoa brilhante, inteligente e rigoroso. “Ele tinha uma família grande, mas sei de histórias que ele recusou várias vezes trabalhos que não gostava. Ele era rigoroso musicalmente e passou por um certo sufoco financeiro por estas questões.”

Frederico Mendonça de Oliveira, conhecido como Fredera, escreveu um livro intitulado “O Crime contra Tenório”, da editora Atenas Editorial). Foi um dos últimos a vê-lo no Brasil. Os dois conviveram muito de 1974 até 1976. A cantora Áurea Martins conta que, antes de Tenório viajar para a turnê, haviam combinado de produzirem algo juntos após seu retorno, o que derruba a tese de Hector Costita.

Tenório sempre ambicionou ter um trabalho solo, mas, para Ruy Castro, sua carreira havia sido atropelada pela própria bossa nova. “Seu auge foi um pouco anterior e, quando ele compunha a banda de Vinicius, já era uma fase menos estelar de sua vida”.

O músico enfrentava uma situação financeira complicada. Sua mulher, Elisa Cerqueira, no Rio de Janeiro, o esperava grávida do quinto filho do casal.

Em 17 de março de 1976, no Teatro Gran Rex, Vinicius e Toquinho encerravam uma temporada de casas cheias. A crítica foi dura com o espetáculo, mas uma nota portenha registrou a epifania: a revelação da noite foi o pianista Tenório, “a mais autêntica expressão da música contemporânea brasileira”. Horas depois, já na madrugada de 18 de março, Tenório saiu do Normandie, na rua Rodríguez Peña, a poucos metros da avenida Corrientes, para nunca mais aparecer.

O dono de um quiosque na região relatou, mais tarde, que o viu comprar tabaco e ser abordado por um Ford Falcon na esquina. Esse vendedor de rua, porém, nunca mais foi encontrado para registrar o que tinha visto.

Na época, Vinicius não estava hospedado no Normandie. Ele dividia um apartamento com a namorada, Marta, próximo dali. Foi ela quem atendeu ao telefonema de Toquinho, que, desesperado, dizia que Tenório não tinha passado a noite no hotel. Vinicius foi acordado por Marta e, de sobressalto, começou uma saga quase que solitária numa cidade já assombrada pela iminência do golpe de Estado e pelo fato de que a repressão já havia começado -grupos de tarefa vinculados à Triple , esquadrão da morte criado no governo de Isabel Perón, circulavam nas ruas.

Em seu depoimento, Ruy Castro deu sua versão. “Pelo que eu imagino o que deve ter acontecido na realidade naquela noite, é o seguinte: ele pode realmente ter saído para comprar fumo. Pode ter sido confundido com algum terrorista ou procurado pela polícia e foi levado. No que foi levado, não sei por quê, começaram a bater nele, aí tem um ponto escuro. Se não era o cara que eles estavam procurando, por que bateram tanto? O fato é que bateram tanto, que já não dava mais para devolver do jeito que estava e o eliminaram.”

Um filme do espanhol Fernando Trueba, que esteve em cartaz no Brasil e ganhou reconhecimento internacional, reconstrói, por meio de relatos de gente que conheceu o músico, sua importância na cultura brasileira. Mas não avança em relação ao mistério da morte do pianista, agora revelada.

“Tenório não era politizado”, diz Ruy. Na época em que gravou “Embalo”, era um estudante universitário. Podia ter uma certa consciência política como tantos estudantes, mas era um alienado como muitos da bossa. Roberto Menescal conta que, em 1º de abril de 1964, foram gravar o disco da Wanda Sá na zona norte. Na volta, passaram pela UNE em chamas e acharam que “alguém tinha dormido fumando”. Não sabiam que tinha havido um golpe.

Ruy também ajuda a situar o lugar de Tenório na linha do tempo estética. Por volta de 1962, a bossa “sai do cool da costa oeste, de João Gilberto e Tom Jobim, e ganha uma vertente mais jazzística de Nova York -mais vibrante, menos sofisticada, menos cool”, com vozes como Leny Andrade e Pery Ribeiro “botando para fora” e uma instrumental mais enérgica.

O Tamba Trio exemplifica a sofisticação e a complexidade. É nesse ponto de mutação que o piano de Tenório ataque rítmico, mão esquerda “baterística”, harmonia adiantada faria uma ponte entre boate e palco de concerto, entre arranjo e improvisação.

A ditadura, porém, interrompeu essa curva. Fica a lacuna que Ruy Castro resume, sem rodeios: “A música brasileira poderia ter sido outra se Tenório não houvesse desaparecido”.

O Hotel Normandie perdeu o glamour de antes. Em 2011, fixou uma placa em homenagem ao pianista na porta. No entanto, durante a pandemia, quando fechou as portas, a placa caiu e quebrou. Restaram apenas as marcas na pedra.

Em dezembro de 2023, depois de Ruy Castro denunciar o sumiço, a embaixada do Brasil em Buenos Aires reproduziu e instalou uma placa idêntica, ajustada à reforma. Hoje, quem passa pela Rodríguez Peña encontra a memória viva no lugar onde Tenório foi visto pela última vez. Com a identificação dos restos, essa pedra deixa de ser só símbolo e vira o marco de um ciclo que, enfim, encontra em fecho.

Do ponto de vista institucional, a trajetória foi lenta. Até 1997, o Estado argentino não reconhecia formalmente sua responsabilidade. Em 2006, uma decisão no Brasil indenizou a família.

A descoberta de agora não é apenas um ato humanitário. É a prova que pode reordenar peças e levar a uma investigação sobre os mandantes do crime cometido pela repressão argentina.

No fim das contas, há também um ajuste de contas com a cultura. O que se perdeu não foi apenas um homem. Foi um movimento. Tenório trabalhava um piano que empurrava a linguagem da música brasileira para um território de modernidade popular -dançável e exigente. Ao interromper essa curva, a repressão expropriou uma possibilidade histórica.