SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Pivô de um suposto esquema de desvios em São Bernardo do Campo, a Organização Social de Saúde (OSS) Fundação do ABC recebeu R$ 2 bilhões em repasses de prefeituras paulistas e do Governo de São Paulo de janeiro a setembro de 2025.
É o maior volume entre todas as entidades conveniadas no estado, única unidade federativa onde mantém contratos. Os números são do Tribunal de Contas paulista.
Sediada em Santo André e fundada em 1967 pelos municípios de Santo André, São Bernardo e São Caetano do Sul, a fundação passou a atuar como organização social no começo dos anos 2000. Esse tipo de entidade não está sujeita às licitações tradicionais pela legislação, elas participam de chamamentos públicos e são selecionadas a partir de critérios como plano de trabalho, por exemplo.
Em nota, a entidade afirmou que ainda não foi procurada por autoridades para prestar esclarecimentos e que permanece à disposição. Disse também que firmou por iniciativa própria em 2019 um acordo com a Promotoria para fortalecer boas práticas de governança.
A Prefeitura de São Bernardo do Campo, onde a entidade opera um complexo que abrange quatro hospitais, concentra a maior parte dos R$ 939 milhões em recursos municipais recebidos pela fundação. Foram R$ 428 milhões neste ano. Na sequência vêm Santo André (R$ 244 milhões) e São Caetano do Sul (R$ 200 milhões).
No caso de São Bernardo, parte do valor repassado parou na mão de criminosos, dizem a PF (Polícia Federal) e o MP-SP (Ministério Público de São Paulo). Ambas as instituições deflagraram operação que culminou no afastamento do prefeito de São Bernardo, Marcelo Lima (Podemos).
O mandatário foi procurado, mas não se manifestou até a conclusão deste texto.
A prefeitura de São Bernardo disse ser natural que concentre o maior volume de repasses porque é a maior das três cidades que criaram a Fundação, contratada como OSS por chamamento público. “Reforçamos que há uma auditoria externa contratada para averiguação de convênios e contratos desde o início deste ano, antes mesmo da investigação”, afirma. Não há data para concluir o levantamento.
Segundo a investigação, uma das fontes dos desvios partia de contratos firmados pela Fundação do ABC com terceirizadas o regime de contratos de gestão, que vigora em São Bernardo, dispensa parte da burocracia inerente ao setor público.
A PF encontrou, por exemplo, mensagens trocadas entre suspeitos de integrar o esquema que sugerem desvios a partir de contratos firmados entre a fundação e a empresa One Laudos, que recebeu mais de R$ 6 milhões da entidade segundo as investigações.
À reportagem, a Fundação do ABC disse que não há menção de irregularidades em contratos que mantém com municípios e que iniciou monitoramento específico das negociações firmadas em São Bernardo. As apurações, conduzidas pela controladoria da OSS, têm sido repassadas ao TCE-SP, afirmou.
A One Laudos, por sua vez, declarou ter sido contratada pela entidade no âmbito de um processo seletivo e que as atividades da empresa obedecem às disposições legais e ocorrem com transparência. Quanto ao inquérito sobre São Bernardo, afirmou que não foi intimada, mas que “a empresa e seus representantes estão à disposição para auxiliar nas apurações e cooperar integralmente com a investigação”.
Em 19 de agosto, dias após a operação, o Tribunal de Contas de São Paulo rejeitou contrato de R$ 20 milhões firmado em 2022 pelo governo estadual com a Fundação do ABC durante o governo Rodrigo Garcia (sem partido) e aplicou multa individual de R$ 7.400 aos responsáveis pela negociação, entre os quais o ex-secretário de Saúde Jeancarlo Gorinchteyn. Cabe recurso.
À Folha, o ex-secretário disse que atuou apenas na formalização do convênio em caráter emergencial para garantir o atendimento diante da escassez de recursos humanos no quadro estatal. Afirmou também ter confiança na reforma da decisão e que as responsabilidades sobre eventuais irregularidades de ordem operacional, financeira e documental competem à entidade.
Procurado, o ex-governador não se manifestou até a publicação deste texto.
Antes, a corte já havia imposto outros reveses à instituição.
Em dezembro do ano passado, por exemplo, o TCE proibiu a Prefeitura de Santo André de pagar R$ 84 milhões à Fundação do ABC. A administração havia reconhecido dever o valor à entidade no âmbito de um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta). A decisão veio a pedido do Ministério Público de Contas, que viu irregularidades no cálculo do débito.
A administração de Santo André disse que o valor se referia a dívidas antigas e que, em razão de divergências entre o TCE e o Ministério Público, suspendeu o pagamento das parcelas. “Santo André é a segunda maior cidade da região do ABC. Portanto é a segunda com a maior demanda em serviços públicos.”
Em 2023, o TCE também julgou irregular a contratação da entidade pela Prefeitura de Mauá num contrato de R$ 58 milhões porque a entidade não apresentou indicadores de produção que justificassem o valor recebido.
“É que a prestação de contas, tal como exposta, obsta que a seguinte indagação seja respondida: a quantidade de atendimentos médicos efetivamente realizados é condizente com o numerário confiado a entidade do terceiro setor?”, diz trecho do acórdão assinado pelo relator, o conselheiro Renato Martins Costa.
Procurada por email, Mauá não respondeu até a conclusão deste texto
À reportagem, a Prefeitura de São Caetano, terceira cidade que mais registra transferências à OSS, disse manter compromisso com transparência e que o contrato com a Fundação do ABC “é fiscalizado pela Comissão de Avaliação e Acompanhamento do Contrato de Gestão, com emissão de relatórios quadrimestrais, e por órgãos de controle externo”.
Mogi das Cruzes, que registra o quinto maior volume de verbas à entidade, afirmou ter enviado ofícios ao Ministério Público e à PF logo após a operação “com o objetivo de verificar a existência de qualquer indício de irregularidade nos contratos”. Segundo o município, ainda não houve resposta. Disse também que foram sancionadas neste ano leis que aprimoram o controle interno.