SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando seus filhos eram crianças, Marleide Andrade, 51, os levava à UBS (unidade básica de saúde) mais próxima da sua casa, em Itaberaba (BA), a 278 km de Salvador. Lá, todos os meses eram atendidos por uma equipe de saúde da família, que inclui pelo menos um médico, um enfermeiro, um técnico de enfermagem e um agente comunitário de saúde. Todos passavam por um check-up rotineiro, que incluía desde medir seus pesos e alturas a arrancar dentes de leite.

Quando deixava de ir, um agente batia na porta de casa para cobrar a visita. Vez ou outra, um rosto já conhecido passava perguntando como estava a família, marcava consultas e avisava-os sobre o calendário de vacinação.

Foi assim que ela descobriu que um dos filhos estava com a doença de Legg-Calvé-Perthes, que acontece quando há uma degeneração da cabeça do fêmur devido à interrupção do suprimento sanguíneo. “No postinho, comentei sobre uma dor que ele tinha na perna, e encaminharam para o ortopedista”, conta. A família foi para Salvador fazer o tratamento e o menino, de então 8 anos, acabou sendo curado.

No contexto do SUS (Sistema Único de Saúde), a estratégia de saúde da família (ESF) faz parte da atenção primária, que cuida das famílias e das comunidades ao longo de toda a vida e é a porta de entrada para o sistema público de saúde. Essa equipe torna-se essencial em locais distantes de grandes centros urbanos e em regiões de vazios assistenciais de saúde, diz Luísa Chaves, médica de família e professora da Universidade Federal de São João del-Rei, em Minas Gerais.

Isso acontece porque o vazio assistencial geralmente não diz respeito apenas à saúde, mas a serviços educacionais e de lazer, que também são entendidos como parte de um conceito ampliado de saúde. “Nesses locais, a proximidade com serviços de saúde se torna grande porque o SUS chega”, diz, enquanto outros serviços, não.

Enquanto o SUS completa 35 anos neste mês, a ESF teve suas bases criadas em 1994, com o Programa Saúde da Família, na época voltado às regiões prioritárias, mas deu tão certo que tornou-se uma política nacional. Como impactos da ESF, são estimadas a redução da mortalidade infantil e da mortalidade por doenças cardiovasculares.

Tendo trabalhado durante um tempo em municípios de 5.000 a 55 mil habitantes, Chaves afirma que há lugares em que os planos de saúde não chegam, mas o SUS sim, e com ele não só serviços essenciais como a vacinação, mas também o próprio lazer. “A gente faz roda de conversa, festa junina na comunidade, colocamos música, quadrilha, porque a gente entende que isso também é saúde”, acrescenta.

As equipes, portanto, se adaptam à necessidade de cada população, o tipo de território, e consideram cada contexto familiar.

Nesse sentido, o elo entre a comunidade e a equipe de saúde é o agente comunitário, cuja principal missão é a escuta, afirma Ilda Angélica Correia, presidente da Conacs (Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde).

Durante os 33 anos de atuação como agente, Ilda percebeu que representava o olhar do sistema de saúde dentro das casas, no seio das famílias. “Eu costumo dizer que a gente faz tudo, somos psicólogos, padres, pastores, conselho tutelar e às vezes até a polícia, em caso de violência doméstica, para tudo [somos] acionados”, afirma.

O vínculo de confiança com a comunidade se constrói porque os agentes vivem no território e conhecem os problemas de cada um. “A gente começa da gestação, do pré-natal, acompanha a criança, o puerpério, a amamentação, a vacinação da criança, a adolescência, o adulto e o idoso. É um acompanhamento da família como um todo”, acrescenta.

A ideia se opõe a um investimento focado apenas em especialistas, uma vez que a maioria dos atendimentos não precisa passar pela atenção especializada, como por hospitais, e podem ser resolvidos em UBSs, por exemplo.

Uma equipe de profissionais pode fazer, portanto, o acompanhamento de perto da família como um todo.

“Às vezes as pessoas acham que elas precisam se partir em pedaços e cada profissional de saúde vai cuidar de um pedaço. Na atenção primária, vemos primeiro a pessoa como um todo”, diz. “Vamos supor que a pessoa precise de acompanhamento no Caps. Esse cuidado é compartilhado, então, ela vai no Caps, mas continua vinculada à sua equipe de estratégia de saúde da família”, explica Chaves.

Hoje, a cobertura da atenção primária no Brasil está estimada em 70%, segundo o Ministério da Saúde, com variações para cada região. Segundo Ilano Barreto, secretário-adjunto da Secretaria de Atenção Primária à Saúde, a cobertura é de 82% no Nordeste, 73% no Norte, 71% no Sul, 66,5% no Centro-Oeste, e 61,32% no Sudeste.

O fortalecimento da cobertura de ESF era um dos principais objetivos do ministério durante a gestão Nísia Trindade. Com a troca, a nova bandeira da gestão de Alexandre Padilha é o Agora Tem Especialistas, e a contratação de hospitais privados para atuar no SUS.

Apesar disso, à reportagem, Barreto afirma que a atenção primária é uma prioridade da gestão, e reconhece que a cobertura de vazios assistenciais é uma dificuldade. “Tudo que se confere como uma barreira de acesso é um problema a ser enfrentado”. Dentre os principais desafios para a expansão da ESF apontados por especialistas estão uma estagnação orçamentária e a dificuldade de fixar médicos em localidades remotas.

A ESF passou ainda por dificuldades durante o governo Bolsonaro, quando o Programa Previne Brasil tentou mudar a forma de alocação dos recursos da atenção primária e foram descontinuados os incentivos para a ESF, assim como eliminado o financiamento federal para as equipes multiprofissionais dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família.

Na visão da presidente da Conacs, a área ainda carece de investimentos. “É muito mais caro tratar um paciente quando ele já está necessitando de uma intervenção hospitalar do que trabalhar as famílias para que elas não adoeçam e não tenham agravamento do problema de saúde”, diz.

“Quando se aloca recursos para a atenção primária, estamos investigando na vida, na educação. Acho que é importante para que a gente tenha cada vez mais um brasileiro saudável.”

O projeto Saúde Pública tem apoio da Umane, associação civil que tem como objetivo auxiliar iniciativas voltadas à promoção da saúde.