SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Crimes contra o Estado democrático de Direito, como aqueles pelos quais o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e os participantes dos ataques do 8 de Janeiro foram condenados, não podem ser anistiados, na avaliação do advogado e professor titular de direito da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) Ingo Wolfgang Sarlet.
“O Estado democrático de Direito não pode premiar quem atenta contra os seus princípios, contra as suas instituições”, diz ele, que argumenta que a Constituição traz uma vedação implícita a este tipo de perdão e que defende que proposta do gênero nem sequer deveria ir à deliberação.
“Causa até espécie que uma medida dessas possa vir de dentro do Congresso, quando ele próprio é o pilar da democracia”, afirma.
Para Sarlet, não é legítimo comparar o debate atual sobre anistia com que ocorreu em 1979, pois à época ainda não se estava em regime democrático, diferentemente de agora.
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PERGUNTA – Como o sr. vê a movimentação pela aprovação de uma anistia aos envolvidos nos ataques do 8 de Janeiro, ao ex-presidente Jair Bolsonaro e demais réus da trama golpista?
INGO WOLFGANG – Não consigo entender como é que um Congresso, que deveria ser o pilar central do Estado democrático de Direito, que é a representação da soberania popular, possa, de fato, cogitar de tramitar e aprovar uma lei dessa natureza, porque ela é realmente manifestamente incompatível com aquilo que é a função e o objetivo de um parlamento num Estado democrático.
P – Por que o sr. diz que é incompatível? O que seria compatível?
IW – Compatível seria não haver anistia. Não é um tipo de delito que possa ser anistiado justamente por uma premissa de que o Estado democrático de Direito não pode premiar quem atenta contra os seus princípios, contra as suas instituições.
Não é que a anistia, o indulto, a graça ou o perdão judicial sejam proibidos. Eles são instrumentos de amparo constitucional e legal.
Agora, há vedação em relação a certo tipo de delitos. E essas vedações não precisam ser necessariamente expressas do ponto de vista constitucional. O fato de a Constituição não proibir expressamente não significa que seja permitido.
Nós temos, inclusive, no capítulo dos direitos fundamentais, no artigo 5º da Constituição, os termos positivos expressos que vedam a concessão de anistia a atos de grupos armados civis ou militares contra a ordem democrática. Ainda que não se trate necessariamente de um grupo armado civil, isso não significa que seja legítimo.
P – Então o sr. considera que um projeto com esse teor seria inconstitucional?
IW – Seria inconstitucional e já deveria, no meu sentir, ser barrado na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), que é uma das comissões permanentes do Congresso Nacional e que tem, inclusive, como papel fazer um primeiro filtro.
É evidente que isso é uma decisão política e que não se pode evitar, numa democracia, que alguém apresente uma proposta. Faz parte do jogo democrático.
Agora, essa proposta deve passar por alguns filtros e o primeiro filtro é o da CCJ, que deve fazer um filtro com base na própria constitucionalidade de um projeto de lei. E, neste caso, [ele] sequer iria a deliberação.
P – O sr. pode detalhar seu argumento sobre por que seria inconstitucional?
IW – Em primeiro lugar, porque se trata de instituições democráticas e a sua proteção no contexto constitucional, da arquitetura constitucional, ela evidentemente faz parte da identidade da Constituição, sendo inclusive cláusula pétrea.
E que, obviamente, projetos que envolvem justamente ofensa a esse tipo de conteúdo da identidade constitucional sequer deveriam ser levados à deliberação.
O segundo argumento é de que há uma vedação constitucional implícita de se anistiar, indultar e mesmo oferecer perdão a esse tipo de atos atentatórios ao Estado democrático de Direito.
P – O sr. pode explicar esse conceito de vedação implícita?
IW – Assim como existem direitos e garantias e princípios implícitos, é evidente também que se pode falar em vedações implícitas.
Tudo que é proibido não precisa estar escrito, ainda mais num texto constitucional, que é um texto que por mais analítico que seja, por mais detalhado que seja, nunca vai ser tão e pode ser tão detalhado quanto um Código Civil, como um Código Penal e outras legislações.
Então é evidente que, se nós temos uma garantia constitucional inclusive nesse caso expressa, que protege as cláusulas pétreas, até mesmo contra modificações em nível de emenda constitucional, se uma emenda constitucional que nasce do Congresso Nacional com uma legitimidade democrática muito maior que uma lei convencional, uma lei ordinária, ou mesmo uma lei complementar que exige maioria absoluta, é evidente que se quem pode mais, que é o poder de emenda à Constituição, já não pode isso, que dirá quem pode menos, que é o legislador ordinário.
P – Essa vedação implícita caberia também para graça e indulto, no caso de serem aplicados a esse tipo de crime?
IW – Sim, com certeza. Seja anistia, indulto, graça ou perdão judicial, qualquer uma dessas categorias está, ou deveria pelo menos estar, abarcada por essa vedação constitucional implícita. No caso desse tipo de delito, é claro. Desse tipo de delito e aqueles outros que estão tipificados à Constituição.
P – A anistia pode ser aprovada antes de uma condenação?
IW – Depende de que tipo de anistia nós estamos falando. Nós temos anistias que são legítimas, e temos anistias que, de partida, como esta, não poderiam nem ser propostas e colocadas em deliberação no Congresso. De qualquer sorte, o ato de concessão da anistia, e também do indulto e do perdão judicial, é após a condenação. Isso deveria ser a regra.
P – E casos do passado do Brasil em que a anistia se deu antes da condenação, como em 1979?
IW – Se nós formos examinar esse histórico de que nós tivemos leis de anistia aprovadas antes de condenações, isso evidentemente leva ao entendimento que poderia se aprovar isso agora também. Isso é um argumento legítimo.
O que eu disse é que a regra não deveria ser essa, mas é um entendimento pessoal de que isso não deveria ser a regra.
E esse é um argumento que tem sido utilizado: ‘afinal de contas, se se anistiou na ocasião, porque não pode anistiar agora?’. Mas são diferentes momentos e também diferentes contextos e diferentes objetos. Não se pode comparar legitimamente aquele momento e aquela lei com esse movimento atual.
P – Por que não é possível fazer esse paralelo, da discussão atual e da anistia de 1979?
IW – Um é o contexto: nós não estávamos num regime democrático, os que estavam sendo anistiados estavam sendo quase que auto anistiados.
E, evidentemente, por um acordo, por um compromisso, se incluiu também outros que estariam sendo anistiados e que teriam, na época, atuado contra as instituições consolidadas, mas instituições do governo militar, do regime militar autoritário e ditatorial. Então, não é o que está acontecendo agora. Nós estamos num contexto democrático, de uma ordem democrática consolidada.
Além disso, nós tivemos uma Assembleia Constituinte Congressual, nós não tivemos uma Assembleia Constituinte Autônoma, que tenha sido eleita só para elaborar a Constituição. O Congresso, na época, acumulou funções constituintes com a função ordinária de legislador.
E, portanto, o próprio Congresso foi que forjou, claro, com os componentes da época, esta Constituição de 88 e edificou este Estado democrático. Por isso causa até espécie que uma medida dessas possa vir de dentro do Congresso, quando ele próprio é o pilar da democracia.
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RAIO-X | INGO WOLFGANG SARLET, 62
Advogado e parecerista. É professor titular da Escola de Direito da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), além de doutor e pós-doutor em direito pela Universidade de Munique. Também é desembargador aposentado do TJ-RS.