SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) recorreram à história para respaldar a necessidade de avaliar a legislação atual sobre crimes contra a democracia a partir de perspectiva que pensa tentativas de golpe por seu conjunto, não por fatos isolados.
A perspectiva foi ressaltada por Cármen Lúcia, cujo voto resultou em maioria pela condenação de Jair Bolsonaro (PL) nesta quinta-feira (11). Votaram da mesma maneira Alexandre de Moraes, Flávio Dino e Cristiano Zanin. Luiz Fux votou pela absolvição de Bolsonaro por todos os crimes. O ex-presidente foi condenado a 27 anos e 3 meses de prisão pela Primeira Turma.
A diferença entre a interpretação de Fux e dos demais ministros residiu sobretudo na maneira de avaliar os tipos penais sobre crimes contra a democracia -abolição violenta do Estado democrático de Direito e golpe de Estado, ambos previstos no Código Penal.
Para a maioria dos magistrados, prevaleceu a ideia de que atentados contra a democracia precisam ser avaliados no seu contexto, não como fatos isolados. Eles também direcionaram o entendimento para o fato de que a violência ou grave ameaça previstas na legislação se dirige não necessariamente contra pessoa determinada, mas a bens jurídicos tutelados.
A necessidade de considerar o contexto apareceu no voto dos ministros permeada de referências a golpes já ocorridos. Cármen Lúcia foi quem mais fez a conexão com o passado.
Trazendo como referência a obra de dois historiadores -Heloisa Starling e Carlos Fico- e do professor aposentado de filosofia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Newton Bignotto, ela abordou algumas das principais dúvidas jurídicas sobre os tipos penais seguindo uma perspectiva com foco no passado brasileiro de golpes, como o de 1964.
A magistrada sustentou que o bem tutelado protegido pela legislação é a paz pública, contra a qual foi voltada a agressão dos réus que, segundo a decisão da maioria dos ministros, formaram uma organização criminosa para a trama golpista de 2022.
Baseada em argumentação histórica sobre ditaduras passadas, a magistrada reforçou a ideia, já defendida por ela no recebimento da denúncia, de que golpes não se fazem em um dia e se dão por meio de eventos que não podem ser vistos separadamente.
Além do foco na necessidade de avaliar os atos trazidos pela PGR (Procuradoria-Geral da República) no contexto, ela e Zanin, os últimos a votar, reafirmaram a perspectiva da maioria dos ministros de que a violência ou grave ameaça presentes nos artigos que tipificam golpe de Estado e abolição violenta do Estado democrático de Direito não precisam ser contra pessoa, mas podem ser voltados às instituições democráticas.
Esse era um dos debates em aberto sobre os tipos penais. O ministro Fux foi o único a entender não haver provas suficientes contra Bolsonaro a ponto de encaixar suas condutas nos tipos penais que previam violência ou grave ameaça e tendeu a olhar os fatos trazidos pela PGR como isolados e sem provas de conexão.
Segundo Lucas Miranda, mestre em direito pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e professor da Faminas (Faculdade de Minas), de fato prevaleceu entre os ministros o entendimento de que os termos violência ou grave ameaça previstos nos tipos penais podem ser voltados a instituições.
“O ministro Zanin, por exemplo, entendeu que, como o bem jurídico protegido é coletivo, não seria compatível a interpretação da necessidade de violência física pessoal, sendo mais adequada a interpretação da violência institucional.”
O especialista também afirma que vigorou entre os magistrados a perspectiva que pensa a trajetória do golpe em seu contexto.
“Eles entenderam que o golpe de Estado é uma situação complexa, que não ocorre por meio de um único ato. Olhando cada ato fora do contexto dos demais, talvez fosse possível dizer que aquele ato não era suficiente para uma tentativa de golpe. Mas, dentro do contexto de atos concatenados, especialmente ligados aos atos efetivamente violentos, entende-se haver uma situação que configura os crimes.”
Cármen Lúcia destacou como atos especialmente violentos o plano para matar autoridades e o 8 de Janeiro. Ela sinalizou, entretanto, ter havido uma cadeia de eventos que tiveram como objetivo desestabilizar, com agressão, a paz pública e colocar em dúvida as instituições, em especial a Justiça Eleitoral.
A ministra afirmou que esse estado de desconfiança é essencial para legitimar golpes, que podem começar com crises fabricadas.
Para Raquel Scalcon, professora da FGV Direito SP, a maioria dos ministros, assim como a PGR, adotou uma interpretação da violência e grave ameaça mais ampla do que a usada tradicionalmente na legislação. Ela dá como exemplo fala de Zanin sobre “coação institucional” no julgamento.
“Claro que eles reconhecem que o 8 de Janeiro teria violência e ameaça à pessoa, mas a narrativa que sustenta as condenações é no sentido de que houve uma crescente coação institucional, com crescente pressão e ameaças à corte”, afirma a especialista.
Segundo Adriana Cecilio, mestre em direito constitucional e professora da Universidade Nove de Julho, os atos descritos pela PGR formaram elementos de prova que demonstraram a violência e grave ameaça descritas na legislação.
“Os tipos penais descritos nos artigos 359-M e 369-L buscam proteger o Estado, bastião da democracia. O Estado é formado por suas instituições. Os ataques perpetrados no 8 de Janeiro denotam a concretização da violência.”
Cecilio diz que o entendimento dos ministros, com exceção de Fux, foi na direção de que esses atos são suficientes para demonstrar a tentativa de golpe, pois o único elemento a evitar que todos os atos levassem à efetividade do golpe foi o fato de os então comandantes do Exército e da Aeronáutica não concordarem em participar.
“O bem jurídico que os tipos penais visam proteger é a manutenção do Estado. E o Estado é formado por instituições. Ao atacar as instituições, através de todas as atitudes adotadas pelos réus, ocorreu o que no direito chamamos de subsunção do fato à norma. Ou seja, quando a prática de um ato se amolda exatamente ao que o tipo penal prevê”, interpreta.