SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Paredes escuras dão ar de mistério à “Assembleia de Deuses”, como intitulam as letras douradas na entrada da Mendes Wood DM. É onde Paulo Nazareth inicia sua oração, no meio de um círculo rochoso. Ele diz que as pedras no centro da sala ligam a matéria ao metafísico. Ao lado, uma faixa desafia imagens da história oficial: “Jesus é um homem negro”.

A referência vai além do repertório religioso de “Nazarethana”, em cartaz em São Paulo até 25 de outubro. Ela resgata a avó do artista, Nazareth Cassiano de Jesus, que vivia em terras indígenas até ser levada ao Hospital Colônia de Barbacena -instituição psiquiátrica que ficou conhecida por oprimir seus internos.

O título da exposição junta o nome da vítima ao de sua mãe, Ana Gonçalves da Silva, e Paulo revê suas raízes ao celebrar a pluralidade de crenças e relações entre o público e a arte. “A mostra é uma epopeia de Exu [divindade que liga o mundano ao divino], em que volto à meninice. Ela resgata a figura da mãe, que estabelece nosso primeiro contato com o mundo, e propõe um retorno ao ventre grávido”, afirma ele.

Ainda no primeiro salão, chuteiras da Nike e um globo de terra dividem a mesma base. Os quebradiços da esfera lembram continentes e os tênis sujos sugerem uma viagem pelo mundo. A ideia se aproxima de uma curiosa pintura do mapa-múndi.

Inscrita em superfície heptagonal, a obra separa a América da África com uma roda de livre movimento. Paulo manipula o círculo e move uma pequena caravela, rodeada por orixás prateados. As santidades tomam o centro e a peça questiona a colonização, que espalhou a cultura africana com deslocamentos forçados.

“Busco trabalhar com aquilo que já está estabelecido. O que eu faço é uma pequena intervenção. Basta um pequeno movimento e você é capaz de transformar”, afirma o artista. Uma fotografia põe ele ao lado uma prateleira com crânios humanos. A disposição das caveiras cria uma espécie de linha do tempo e resgata estudos ultrapassados, que recorriam à ciência para inferiorizar pessoas não brancas.

Se numa extremidade há o estágio fossilizado, na outra Paulo se descreve como anônimo, representante de uma humanidade “povoada por pensamentos, carne, sangue e tudo mais que a vida pode oferecer”. “A ciência e a religião são duas grandes forças que lutam pela verdade. Ambas podem nos cegar.”

Já em outra sala, comentário parecido vem da série de fotos dedicada à Ana. Sua camiseta estampa Maria de Nazaré e ela segura retratos de mulheres Borum, grupo indígena do qual é descendente.

O artista explica que os últimos surgiram dos daguerreótipos, técnica que marca o surgimento da fotografia e foi muito utilizada para catalogar corpos estranhos a grupos dominantes. São vestígios importantes para sua mãe: eles a aproximaram de Nazareth, cuja história foi dissolvida pelo combate aos movimentos antimanicomiais.

Dos retratos que serviram à dominação à figura de Ana tirada com o celular, a imagem tensiona naturezas diferentes e mira a continuidade do registro. “Quando falamos da história da fotografia, falamos de questões etnográficas. Essa gente preta, indígena, gente outra, só aparecia como objeto de estudo. Demorou para que esses corpos surgissem como sujeitos ou produtores de suas imagens”, afirma Paulo.

Nos arredores, as paredes de amarelo vibrante invocam Oxum, orixá do amor e da fertilidade, num salão de de desenhos e estátuas que variam entre criaturas e formas humanas. Noutro canto, sob a haste da bandeira “Olho de Deus”, que mira o teto da galeria, pinturas coloridas retratam santos negros.

É interessante que uma das obras mais chamativas seja a que mais se afasta das cores fortes. Pênis e vaginas desenhadas por barbantes vermelhos ocupam um espaço em branco. O ambiente parece um erro, não finalizado. Indefinido entre o masculino e o feminino, é a pluralidade de Exu que molda a sala. Nas palavras de Paulo, vemos a passagem entre o mundo físico e o espiritual.

Esse mesmo princípio de objeto em construção vale para “Mama”, parede com desenhos das mães dos visitantes. Entre traços habilidosos e realizações despretensiosas, todos carregam o nome, a data e o local -o projeto tem itinerância em países diversos e traz um ritual coletivo.

“A ideia é fazer os desenhos que damos, quando crianças, de presente para nossas mães. É o desenho puro, despido de autocrítica e anterior à alfabetização”, diz ele ao livrar o repórter de qualquer receio. “Agora você pode dizer à sua mãe que ela está num desenho em viagem pelo mundo.”

NAZARETHANA

Quando Seg. a sex., das 11h às 19h; sáb., das 10h às 17h; até 25/10

Onde Mendes Wood DM – R. Barra Funda, 216, SP

Preço Grátis

Autoria Paulo Nazareth