BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – A Câmara dos Deputados usou o projeto de lei de combate a fraudes no INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) para recriar uma modalidade de desconto nos benefícios que já havia sido suspensa pelo órgão devido a denúncias de irregularidades.

Ao mesmo tempo em que revoga a possibilidade de descontar mensalidades de associações e entidades —mecanismo central do esquema investigado na Operação Sem Desconto—, o texto inseriu autorização para deduzir dos pagamentos a “amortização de operações de antecipação do benefício previdenciário”.

Esse tipo de transação era oferecido pelo PicPay, empresa de serviços financeiros controlada pela J&F Participações, holding pertencente aos irmãos Joesley e Wesley Batista. No início de maio, o presidente do INSS, Gilberto Waller Júnior, suspendeu o serviço após denúncias de cobrança de taxas não autorizadas e descumprimento de normas do instituto.

A reportagem procurou o PicPay por meio de sua assessoria para saber se a empresa é favorável ao dispositivo e se atuou no Congresso para defender a mudança. A companhia não quis se manifestar.

Na semana passada, a Câmara aprovou a inclusão da autorização desse tipo de desconto na lei que rege os benefícios da Previdência. A base aliada do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) apresentou um destaque para votar o dispositivo de forma separada, numa estratégia para tentar derrubá-lo, mas sem sucesso.

A medida foi aprovada por 259 votos a 126, com largo apoio de deputados do centrão e da oposição. O texto ainda precisa passar pelo Senado.

A versão validada ainda excluiu um trecho que tentava ao menos proibir a cobrança de taxas, cerne do problema identificado anteriormente pelo INSS. O texto inicial previa a possibilidade de desconto “sem encargos financeiros”, mas essa parte foi suprimida antes da votação final.

A questão virou motivo de discórdia durante a votação no plenário da Câmara, com manifestações contrárias de parlamentares do PT, PCdoB, PSB e PSOL.

“Não há nada escrito sobre a antecipação ser [feita] no mês, nada. […] Isso significa que os bancos vão criar uma nova operação, muito pior do que o crédito consignado. O crédito consignado tem limite de juros, que hoje estão em torno de 1,8%. Aqui o banqueiro vai poder cobrar o quanto ele quiser de juros, sem limite para o endividamento do coitado do aposentado”, criticou o deputado Rogério Correa (PT-MG) durante a sessão.

“O relator não permitiu que fosse colocada a frase ‘sem encargos financeiros para o beneficiário'”, acrescentou.

O relator do projeto, deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), disse que o trecho foi suprimido pela Casa Civil, em decisão validada em acordo com líderes partidários.

“Na conversa que eu tive com o ministro Rui Costa, na Casa Civil, ele ficou de me remeter um texto de acordo. […] Eu coloquei no texto ‘sem encargo financeiro’. Quando o texto voltou para mim, voltou sem essa parte, e foi o texto que foi acordado pela grande maioria dos líderes, inclusive pelo líder do PSB, que estava presente”, disse Forte.

“Se o deputado Rogério quer culpar alguém, que bata na porta do Rui Costa”, afirmou o relator.

A reportagem procurou a Casa Civil na última terça-feira (9) para saber as razões pelas quais o órgão defendeu a retirada do trecho. A reportagem também questionou se o governo tinha interesse em favorecer o PicPay com a retomada da modalidade. A pasta não respondeu a nenhuma das perguntas.

O PicPay também não se manifestou sobre esse ponto.

Segundo interlocutores do governo, o INSS considera absurda a autorização para o desconto da antecipação de benefício. Oficialmente, o órgão não se manifestou quando procurado pela reportagem.

A ABBC (Associação Brasileira de Bancos) —entidade que tem o PicPay entre seus associados— disse ser contra a manutenção do dispositivo, independentemente da inclusão ou não da expressão “sem encargo financeiro”.

“A associação entende que essa modalidade representa riscos relevantes, que justificam sua supressão integral do texto legal”, disse, em nota. Segundo a entidade, o modelo de antecipação amplia riscos de superendividamento.

A ABBC afirmou que a antecipação seria uma operação de crédito, sujeita à incidência de juros e IOF (Imposto sobre Operações Financeiras), mas sem os controles legais que regem as operações de crédito convencionais.

“A depender do prazo de antecipação, o custo efetivo total da operação pode extrapolar o teto de taxa de juros estipulado pelo CNPS [Conselho Nacional da Previdência Social]”, disse. “Quando somada a outras modalidades, como o crédito consignado, pode exceder o limite de 45% da renda e comprometer até 100% dos rendimentos do beneficiário.”

A entidade ainda alertou para o risco de quebra de contrato, já que a antecipação poderia romper as cláusulas de exclusividade de processamento da folha de pagamento. “A flexibilização pode gerar obrigações de devolução ou revisão dos valores pagos nos leilões [da folha de pagamento], além de reduzir a arrecadação futura da União”, afirmou.

A Febraban (Federação Brasileira de Bancos) disse que não atuou pela inclusão do produto no projeto de lei, nem recebeu demandas de seus associados nesse sentido.

“Hoje, o crédito consignado INSS é uma linha de empréstimo com a menor taxa de mercado e permite que o aposentado comprometa até 35% de seu benefício em parcelas. Um novo produto que permita um endividamento adicional do benefício do aposentado e apresente taxas superiores às do consignado poderá trazer um descontrole financeiro e prejuízos relevantes a públicos mais vulneráveis”, afirmou.

INSS COMO FIADOR DE BANCOS

O projeto aprovado também prevê que o INSS deverá restituir ao beneficiário o valor integral de eventuais descontos indevidos feitos por entidades associativas, instituições financeiras ou sociedades de arrendamento mercantil, caso elas não efetuem o ressarcimento por conta própria em um prazo de até 30 dias.

A medida foi considerada absurda dentro do INSS, pois coloca o órgão numa posição de fiador de bancos e outras entidades que operam o crédito consignado. O risco é encorajar instituições a fraudarem contratações de empréstimos com a segurança de que o governo vai cobrir o pagamento.

O texto aprovado até prevê que o INSS poderá cobrar os valores das instituições financeiras ou, em última instância, do FGC (Fundo Garantidor de Crédito), criado originalmente para garantir aplicações em caso de problemas em instituições financeiras.

Esse trecho foi incluído para minimizar eventuais impactos nas contas públicas. No entanto, integrantes do órgão entendem que não é papel do INSS atuar como garantidor dessas operações.