FOLHAPRESS – Os vulcões do Equador já inspiraram muitos escritores, como se não fosse possível evitar sua beleza, sua simbologia para os povos ancestrais dos Andes, sua imponência num país hoje tão conturbado pela violência.
O brasileiro João Cabral de Melo Neto, em sua passagem como embaixador em Quito de 1979 a 1981, escreveu poemas em que o ar rarefeito e a visão do Cotopaxi e do Chimborazo se tornavam metáforas de destino e resistência. Na coletânea “Vivir en Los Andes”, o poeta recifense fala do “cone perfeito de neve” ou do “alto colosso” que parecia sufocar os habitantes locais.
Essa presença grandiosa e às vezes opressiva da geografia também é central na obra da equatoriana Mónica Ojeda, uma das vozes mais originais da literatura latino-americana atual.
No novo romance “Xamãs Elétricos na Festa do Sol”, Ojeda parte de um cenário vulcânico o Chimborazo para ambientar uma narrativa em que música, rito e delírio se confundem.
Jovens se reúnem para celebrar o Inti Raymi, a festa do Sol. Drogas, batidas eletrônicas e rituais ancestrais criam um espaço de transe coletivo, marcado pelo ritmo do tambor e pela respiração da montanha.
Também se mesclam na narrativa as histórias de pessoas que se refugiam na paisagem montanhosa para escapar das altas taxas de homicídio num pais que virou, nos últimos anos, um “hub” internacional do narcotráfico.
Neste livro, o vulcão aparece como uma mãe assustadora e acolhedora ao mesmo tempo, símbolo de uma natureza que não é contemplada de longe, mas vivida por todos os equatorianos.
A narrativa começa com uma frase de Nietzsche: “O ouvido é o órgão do medo”, algo que funciona como chave para a leitura. Para Ojeda, a música não é um objeto que se escuta, mas uma força que pode desmontar a racionalidade.
O medo dos jovens que se aproximam dos vulcões não é negativo, mas iniciático: condição de passagem para que os personagens ultrapassem seus próprios limites.
Enquanto eles rumam ao vulcão para celebrar a festa do Sol indígena, o romance dialoga diretamente com o modo de ver o mundo dos povos ancestrais andinos. A história é contada em coro, cada capítulo dá voz a um dos personagens.
Entre eles está Nicole, resistente aos encantos da música; Mario, transformado em Diabo sob a máscara de Diabluma; Pamela, jovem grávida e teórica musical; Pedro, capaz de ouvir nas pedras o ritmo do universo; e as Cantoras, que funcionam como corifeus de uma tragédia andina.
No centro, está Noa, que procura o pai ermitão para lhe fazer perguntas. As vozes reproduzem a sensação de um ritual coletivo, típico daqueles realizados na região.
Ojeda retoma aqui temas que já percorrem seus livros anteriores a violência urbana, a família em crise, o poder exercido por seitas ou coletivos. Mas faz isso com um salto de ambição literária.
Se em “Mandíbula” o horror vinha da intimidade das relações adolescentes e em “Nefando” do labirinto digital, em “Xamãs” o terror é cósmico: um medo que vem da natureza, da dissolução de fronteiras entre corpo e mundo.
A prosa de Ojeda tem ritmo de mantra, mas a escritora também dedica atenção aos detalhes realistas. A metamorfose de Noa em uma égua elétrica pode ser lida tanto como mito quanto como delírio de uma rave regada a drogas.
Com esse romance, Ojeda se inscreve de vez na tradição do gótico latino-americano feminino, ao lado de escritoras como as argentinas Samanta Schweblin e Mariana Enriquez. Mas vai além: sua escrita é um ritual, uma possessão.
Se João Cabral via nos vulcões do Equador uma tribuna para Bolívar condenar quem fecha a América ao fermento, Ojeda transforma o Chimborazo em palco para uma outra revolução a do corpo que se relaciona de modo visceral à geografia e à história do Equador, ao mesmo tempo em que dialoga com os tempos que vivemos.
Xamãs Elétricos na Festa do Sol
Avaliação Muito Bom
Preço R$ 79,80 (296 págs.); R$ 55,90 (ebook)
Autoria Mónica Ojeda
Editora Autêntica Contemporânea
Tradução Silvia Massimini Felix