RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Vista do alto, a lagoa do Camorim, na zona oeste do Rio de Janeiro, oferece uma visão idílica do Complexo Lagunar de Jacarepaguá, com a união de suas águas verdes às escuras do rio Arroio Fundo.

Navegando, o forte cheiro deixa claro que tudo é esgoto. O biólogo Mário Moscatelli, que acompanha a degradação das lagoas há mais de 30 anos, resume de forma direta.

“É a mistura de merda pura com cianobactéria. Você tem a causa de um lado e a consequência. Do alto é visualmente muito interessante. Do ponto de vista ambiental, é uma catástrofe”, disse ele.

Composto por quatro lagoas e destino das águas de 21 rios e canais, o complexo sofre com o lançamento irregular de esgoto desde o avanço da indústria imobiliária formal e informal na década de 1970 em direção à Barra da Tijuca e seu entorno. Favelas e condomínios avançaram sobre a área sem qualquer infraestrutura sanitária.

Os edifícios foram autorizados sob a condição de instalarem estações de tratamento de esgoto próprias. A solução paliativa teve irregularidades e falhas na fiscalização, afirma o promotor José Alexandre Maximino, coordenador do Gaema (Grupo de Atuação Especializada em Meio Ambiente do Ministério Público).

“O laboratório contratado pelo condomínio ia lá para colher a amostra para apresentar aos órgãos ambientais. Depois que o laboratório saía, algumas estações eram desligadas para economizar energia ou produto químico”, disse o promotor.

Ao longo dos anos, a infraestrutura de esgoto foi instalada, mas muitos condomínios até hoje não se conectaram à rede. As favelas se ampliaram com a exploração por grupos criminosos das moradias irregulares. A região foi a que ganhou mais moradores na cidade nos últimos anos.

A qualidade da água nos cerca de 13 km² de espelho d’água se assemelha aos piores índices da Baía de Guanabara.

“A ocupação dessa região repetiu mesmos erros das áreas mais antigas do Rio”, afirmou Moscatelli.

O cenário é agravado pelo lixo lançado nos rios, acumulando sofás, pneus e outros detritos sobre o tapete verde de cianobactérias.

Essa vista é compartilhada por classes sociais distintas, indo desde os moradores da favela da Muzema, área sob conflito entre a milícia e o Comando Vermelho, até os do condomínio Península, onde residem o governador Cláudio Castro (PL) e o ex-prefeito Marcelo Crivella (Republicanos). Ambos margeiam a lagoa da Tijuca.

Entre as promessas para a preparação das Olimpíadas de 2016 estava um investimento de R$ 673 milhões na dragagem dos sedimentos acumulados ao longo de anos. As obras não saíram do papel em razão de suspeitas em sua licitação.

Em 2023, uma mortandade de cinco toneladas de peixes simbolizou a catástrofe ambiental. A pesca na região, atualmente, resume-se à tilápia, espécie resistente à poluição.

“Depois dos Jogos Olímpicos, eu praticamente tinha entregue os pontos. Eu disse: ‘Vamos lutar por inércia, mas o sistema lagunar não vai sair dessa situação’. Felizmente, veio o novo marco do saneamento e, com ele, os recursos financeiros”, disse Moscatelli.

O biólogo atualmente é consultor da concessionária Iguá, que venceu a licitação da concessão de saneamento básico da área. Além do compromisso de ampliar a coleta de esgoto para 90% da região (atualmente em 70%, de acordo com dados oficiais) até 2033, o contrato prevê investimento emergencial de R$ 125 milhões para reduzir o despejo de esgotos nos rios, por meio Outra obra em execução pela Iguá é a dragagem para retirar 2,3 milhões de m³ de lodo do fundo das lagoas em três anos, com gasto de R$ 250 milhões. O principal objetivo é aumentar a profundidade do corpo hídrico (em alguns pontos de apenas 30 cm) e alargar canais submersos para facilitar a troca de água com o oceano.

“O mais crítico era aumentar o canal para você ampliar a circulação hídrica. Deixar a profundidade das lagoas pelo menos com um metro de circulação para você ter um mínimo de troca de água”, disse Edgar Vilarinho, da Arcadis, empresa que projetou as intervenções.

Segundo a Iguá, após um ano de obras e 25% do volume total dragado, há sinais de melhora nas taxas de oxigênio dissolvido nas águas, principalmente na lagoa da Tijuca, onde se concentram as atividades. Moscatelli aponta também o aparecimento de aves há muito distantes da região.

“Ano passado, apareceram dois casais de biguatinga, ave que não tinha notificação aqui na região. Além de aparecer, fizeram ninho. Hoje, temos 18. Para não ser crucificado pelos acadêmicos ‘strictu sensu’, ornitólogos, uma boa coincidência”, diz ele.

O diretor de Operações da Iguá, Lucas Arrosti, afirma que a dragagem em execução não abrange todo o necessário para melhorar a circulação da água entre as lagoas e o mar.

“Estamos fazendo o melhor e o mais eficiente com o recurso carimbado em contrato. Existe ainda uma necessidade de complementaridade, principalmente na lagoa de Jacarepaguá”, conta.

O biólogo Mauro Vilar, coordenador do subcomitê da bacia hidrográfica, afirma que a dragagem é necessária. Contudo, avalia como um risco os reflexos da obra na praia da Barra.

“Em três anos eles não vão resolver o problema de saneamento daquela região. Vai continuar entrando poluente do entorno. Se aumenta essa circulação hídrica, o que está entrando nas lagoas pode chegar cada vez com mais frequência na praia. Não se pode tratar o complexo lagunar como um sistema fechado”, diz.

Vilar aponta como principal risco a chegada na praia de cianobactérias tóxicas. O monitoramento da balneabilidade da orla feito pelo Instituto Estadual do Ambiente não prevê a medição da presença destes microrganismos.

Ele também indica como um “risco assumido” a falta de clareza sobre os poluentes que se desenvolveram no lodo que está sendo revolvido na dragagem. “O sedimento, assim como a água, são matrizes complexas.”

A Iguá afirma que o licenciamento ambiental impôs como uma das condicionantes o monitoramento diário da água das lagoas a fim de identificar os impactos da obra.

Procurado, o governo estadual não respondeu aos questionamentos. Em nota, a prefeitura afirmou que investiu R$ 64,6 milhões na urbanização de favelas da área e realizou 1.486 demolições de construções irregulares.

Moscatelli ressalta que as obras não esgotam os desafios da lagoa. Ele aponta a necessidade do ordenamento da ocupação do solo e educação ambiental para evitar o despejo de lixo nos rios. “O fundo é político-cultural. As pessoas aceitam. Para que isso seja perpétuo e crescente, vai ter que resolver assuntos espinhosos para a região.”

Ele diz ser tecnicamente possível a melhora ambiental do complexo lagunar e lembra a recuperação da lagoa Rodrigo de Freitas, na zona sul. “Há 20 anos, ela era considerada irrecuperável. Hoje, é um importante centro de ecoturismo. É plenamente possível.”

ENTENDA A SÉRIE

A série “Desafio Ambiental nas Capitais”, às vésperas da COP30 (conferência das Nações Unidas que será realizada em novembro em Belém), aborda problemas que grandes cidades brasileiras enfrentam no campo da sustentabilidade.