SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – Em 1953, Pierre Verger morreu para logo depois renascer. À época, o fotógrafo foi iniciado no culto da divinação no Benin e recebeu o título de babalaô —sacerdote que oferece orientação às pessoas tendo como base um jogo de búzios chamado ifá. Depois dessa experiência, o francês passou a ser conhecido como Fatumbi, termo iorubá que significa “nascido de novo graças ao Ifá”.

Essa jornada de morte e renascimento é um dos fios condutores da exposição “Fatumbi”. Parte da temporada França no Brasil, a mostra reúne no Museu de Arte da Bahia, o MAB, trabalhos daquele que é um dos mais importantes retratistas do universo afro-brasileiro.

Num primeiro momento, o público tem contato com fotografias feitas em Recife e Salvador, cidade que ocupa lugar central na produção de Verger.

Nascido em uma família abastada da França, ele decidiu viver uma vida nômade depois que sua mãe morreu, em 1932. Com isso em mente, viajou por países como Espanha, Japão, China, Senegal e a antiga União Soviética. Em 1946, desembarcou na capital baiana influenciado pelo romance “Jubiabá”, de Jorge Amado.

Na cidade, fotografou a efervescência do Carnaval, a fé das religiões de matriz africana e a rotina dos trabalhadores, registros que estão na mostra do MAB. São imagens que não almejam capturar nada além da trivialidade dos dias.

“Verger é um fotógrafo do povo e do cotidiano. Ele quase nunca fez fotos em estúdio e não se interessava por temas que estavam nas manchetes dos jornais”, diz Alex Baradel, que assina a curadoria da mostra ao lado do artista visual Emo de Medeiros.

Em uma das imagens mais interessantes da exposição, o fotógrafo capturou o momento em que um grupo de homens arrasta uma corda durante o trabalho de pesca em Itapuã. A obra tem tanta dramaticidade que é quase possível sentir o esforço físico empreendido pelos pescadores.

Em outro registro, Verger fotografou a festa do Senhor Bom Jesus dos Navegantes. No centro da cena, há um homem de blusa listrada e chapéu de palha. Atrás dele, é possível ver uma profusão de frutas, como abacaxis e melancias. Na frente do rapaz, dezenas de pessoas observam a baía de todos os santos.

Aqui, o que surpreende é a composição do retrato e o equilíbrio entre os diferentes elementos que compõem a imagem.

Baradel, o curador da mostra, diz que Verger tinha grande domínio técnico do seu ofício, característica que desenvolveu ao ser pupilo do fotógrafo Pierre Boucher. Apesar disso, o francês considerava que os aspectos técnicos estavam em segundo plano.

“Ele costumava dizer que nem sabia porque fazia uma foto. Só tinha essa resposta na hora da revelação”, diz Baradel, que também é responsável pelo acervo fotográfico da Fundação Pierre Verger, localizada em Salvador.

Para ele, o trabalho do artista era quase instintivo, postura diferente daquela adotada por seus contemporâneos, como Henri Cartier-Bresson e Marcel Gautherot. “Ambos pensavam muito na fotografia e na composição dela. Eram imagens tecnicamente perfeitas. Já Verger era um fotógrafo que não estava pensando na construção de suas fotografias. Havia muito menos um raciocínio de composição e mais uma poesia do cotidiano.”

O fotógrafo também não pretendia fazer de suas imagens um estudo etnográfico sobre Salvador. “A fotografia dele era um encontro com culturas e com pessoas. O objetivo não era antropológico.”

Isso começa a mudar de figura a partir de 1948, quando ele viajou para a África após ganhar uma bolsa de estudos do Institut Fondamental d’Afrique Noire, o Ifan. A partir daí, começou a estudar de forma mais aprofundada o culto aos orixás, processo que havia começado quando ainda estava na Bahia.

Pouco antes de viajar, o fotógrafo passou a acompanhar de perto o candomblé, registrando rituais em terreiros como o da Tumba Junsara e o de Joãozinho da Goméia.

Presentes na exposição do MAB, essas imagens mostram os fiéis em transe e trajando vestimentas que remetem a orixás como Omolu, a divindade da cura e da doença.

Verger se aproximou ainda mais dessa tradição religiosa após ganhar a bolsa de estudos do Ifan, produzindo cerca de dois mil negativos como resultado da pesquisa.

Nos anos seguintes, voltou ao Benin em outras ocasiões para registrar cerimônias sagradas. Na mostra, há fotografias de pessoas com o corpo coberto pelo efun, uma pintura de cor branca e formato circular usada em rituais de iniciação.

É justamente nesse período que o trabalho de Verger sofre uma inflexão. “Eu diria que essas fotos, sim, têm um objetivo mais antropológico”, diz Baradel.

A produção fotográfica não foi o único resultado da pesquisa no continente africano. A pedido do Ifan, o artista passou a sistematizar em textos as suas descobertas. Em 1954, publicou o livro “Dieux d’Afrique”, obra em que descreve os orixás.

Em 1968, foi a vez de lançar “Fluxo e Refluxo”, considerada uma de suas obras mais importantes. Fruto de uma ampla pesquisa, o livro analisa os elementos culturais que ligam a Bahia ao continente africano. Graças ao estudo, Verger ganhou o título de doutor pela Sorbonne mesmo sem nunca ter frequentado a universidade francesa.

“Quase ninguém tinha feito esses trabalhos na África”, afirma Baradel. “São obras que se tornaram uma fonte de informação importantíssima.”

Lançado em 1981, “Orixás” é outro trabalho basilar. Não à toa, foi eleito pela Folha de S.Paulo um dos 200 livros mais importantes para entender o Brasil. “De forma geral, não somente esse livro, mas a obra de Verger como um todo é fundamental para o povo do candomblé e para a cultura brasileira.”

Para ilustrar isso, a mostra traz depoimentos de pessoas ligadas às religiões de matriz africana, como Cici de Oxalá, Obaraí e Moa do Katendê.

A exposição traz ainda 16 trabalhos feitos por Emo de Medeiros, artista franco-beninense que também assina a curadoria do projeto.

Uma das fotografias mostra um navio todo pintado de preto afundando no oceano, enquanto duas pessoas vestidas de branco observam o naufrágio. É como se a obra fosse um ritual fúnebre que anuncia o fim de uma jornada e o início de outra.

“Eu quis criar obras que servissem de metáfora para a trajetória de renascimento de Verger”, diz Medeiros.

Para isso, ele produziu as imagens por meio da inteligência artificial, usando como comando as orações do ifá, o sistema divinatório iorubá. “Meu objetivo era contar a história pessoal de renúncia de Verger, mas também a história coletiva de libertação dos afrodescendentes.”

FATUMBI

– Quando Ter. a dom., das 10h às 18h. Até 30 de novembro

– Onde Museu de Arte da Bahia – Av. Sete de Setembro, 2340, Corredor da Vitória

– Preço Gratuito

– Classificação Livre