SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O pátio da escola é ocupado pelo cenário juvenil de uma peça, que, como manda o protocolo, demanda muito papel kraft, EVA e cartolina. Os alunos entram na cena dentro da cena, enquanto o diretor Cao Hamburger comanda tudo de longe, com leveza e bom humor.
Aquela peça escolar é uma das sequências que melhor ilustram a mensagem por trás do filme “Escola Sem Muros”, uma ode ao poder da educação. Nela, crianças e adolescentes outrora pouco interessados em aprender se juntam sob a batuta de um adulto que as trata com zelo e atenção, algo escasso naquele ambiente precário.
“Eu tinha interesse em fazer um filme nesse universo e, durante as minhas pesquisas, fui entendendo a importância da educação. É talvez a coisa mais importante para qualquer nação. Todo país que se diz desenvolvido teve uma rede de ensino público de alto nível”, diz Hamburger, acostumado a falar com os mais jovens pelo trabalho em “Castelo Rá-Tim-Bum”, cria sua.
O diretor se interessou pela temática da educação depois de “Pedro e Bianca” e “Malhação”, e também por influência da filha, que trabalha no ensino público paulista. Ele conta que “Escola Sem Muros” é como um “Ao Mestre com Carinho” à brasileira, que toma como base a história real de Braz Nogueira, educador responsável por revolucionar o ensino de uma escola municipal na favela Heliópolis, nos anos 1990.
Ele se tornou referência na educação pública do país e, para encarná-lo, Hamburger recorreu a Julio Andrade, outro que caminhava por aquele set de filmagem de forma descontraída, numa troca de experiência com seus pares mais novos.
Boa parte do elenco, afinal, é formada por crianças e adolescentes que nunca atuaram profissionalmente. Por isso, percebe-se um clima de cuidado e afeto incomuns ao ambiente normalmente agitado dos sets. “Quem quer levar bronca levanta a mão”, grita uma assistente de direção, espirituosa, ao tentar posicionar corretamente os atores em cena.
As filmagens tomaram uma escola municipal na Vila Maria, na zona norte da capital paulista, durante o mês de julho. Houve certa pressa, já que a produção da Gullane precisou usar a janela das férias escolares de meio de ano. Outras sequências foram gravadas na Caminhada pela Paz, marcha contra a violência que foi concebida por Nogueira, e em Heliópolis, absorvendo trabalhadores do audiovisual que vêm do bairro.
Essa integração segue os preceitos do educador, que se juntou a líderes comunitários ao assumir a direção da Escola Municipal Presidente Campos Salles, em 1995, e derrubou muros metafóricos e físicos para gerar um senso de comunidade que aproximava escola, familiares e os moradores.
É uma ideia que se reflete na cena que Hamburger gravava naquele pátio. “Heliópolis! Heliópolis! Heliópolis”, gritavam seus personagens, orgulhosos, no fim da peça escolar que apresentavam.
“É muito forte, no filme, essa luta contra o estigma que existe com o ensino público e com aquele lugar. Os próprios alunos tinham isso consigo, quando o Braz Nogueira chegou àquela escola. Isso é fruto de um ciclo vicioso, perverso, que mantém a desigualdade do país. Por isso temos que continuar melhorando o ensino público”, diz Hamburger, que acredita que, nos últimos anos, em São Paulo, a área “andou para trás”.
Em meio àquela euforia das gravações, Julio Andrade caminhava discretamente, portando um casaco marrom noventista e uma câmera analógica. Ela não era objeto de cena, porém. O ator conta que gosta de registrar os bastidores de seus projetos, tanto para criar um álbum de memórias pessoal, quanto para mergulhar na produção.
Apesar de fazer uma aparição de poucos segundos na cena que era gravada no dia em que a reportagem esteve no set, o ator fazia questão de estar perto das câmeras a todo momento. “Existe um espírito de coletividade nesse projeto. O Cao não faz nada sozinho, como o Braz não fazia nada sozinho, e isso só deixa o projeto mais consistente e mais bonito”, diz Andrade.
Para compor seu Braz Nogueira, ele conversou exaustivamente com o educador, mas também teve vivências em escolas de São Paulo. A ideia, conta, não era se aproximar de seus trejeitos ou da aparência, mas criar um personagem com os quais as pessoas, especialmente quem trabalha no ramo, pudessem se identificar. “Eu tento entender a alma dos personagens, não fazer uma imitação.”
Este é mais um trabalho que Andrade aceitou numa busca por papéis com um forte lado social ele ganhou projeção com a série “Sob Pressão”, que versa sobre o sistema público de saúde, e, mais recentemente, foi elogiado por “Betinho: No Fio da Navalha”, sobre o ativista pelos direitos humanos do título.
“Escola Sem Muros” é o primeiro longa de Hamburger em 14 anos o último foi “Xingu”. A ideia é que a trama seja lançada no meio do ano que vem, em algum festival internacional. O diretor tem credencial para isso, afinal, seu “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias” havia sido o filme brasileiro deste século que mais chegou perto de uma indicação ao Oscar internacional, antes do fenômeno “Ainda Estou Aqui”.