BERLIM, ALEMANHA (FOLHAPRESS) – É curioso conversar com Hemat Afghan, 26. Seu sobrenome é esse mesmo, vem do avô. “Como Afeganistão [em inglês e alemão]. Lembro com carinho que sou de lá toda vez que alguém pergunta meu nome.”
Há dez anos na Alemanha, ele alterna admiração pelo país que o acolheu, quando descreve sua própria trajetória, com o inconformismo de ver o irmão sem asilo preso à burocracia e a um centro de refugiados do qual não pode se afastar.
É a segunda vez que o irmão três anos mais novo fica para trás.
Hemat, junto com o caçula e um primo, estavam entre as centenas de milhares de refugiados que chegaram à Alemanha em 2015. Naquele ano, em gesto histórico, Angela Merkel abriu as fronteiras do país no momento mais agudo da crise dos refugiados. “Wir schaffen das” (“Vamos conseguir”), declarou a então primeira-ministra diante do desafio de absorver centenas de milhares de imigrantes.
Na madrugada de 5 de setembro, quando Alemanha e Áustria anunciaram que estavam abertas a imigrantes, Hemat e seu grupo já estavam a caminho. Ele tinha 15 anos. “Foi tudo muito difícil. Nunca tinha dormido fora de casa.” Na fronteira entre Irã e Turquia, seu irmão foi detido e voltou.
Hemat e o primo superaram os Bálcãs e conseguiram chegar à Áustria e à fronteira alemã em outubro, seis semanas após terem saído de casa. A vida no Afeganistão não era ruim, a família tinha posses, e seu pai ganhava um bom salário. “Mas era sempre guerra e conflitos, com os americanos e com o Talibã.” A instrução familiar de ir para a Europa o apavorou. “Eu não queria ir para a Europa. Não conhecia nada. Não entendia o idioma, não entendia a cultura e não sabia como as pessoas me tratariam.”
Trataram bem, como mostram imagens da época de imigrantes sendo recepcionados com flores e garrafas de água nas estações de trem. Os alemães haviam dado um exemplo de direitos humanos para o planeta e, até ali, a grande maioria tinha orgulho do fato. “O clima era muito positivo naquela época.” De Rosenheim, perto da divisa, Hemat foi transferido para um abrigo de menores refugiados próximo a Stuttgart. “Era uma vila pequena, conheci pessoas maravilhosas. Tive muita sorte de ter ido para lá.”
O afegão então viveu uma trajetória de adaptação exemplar. Esforçou-se para aprender alemão, uma das maiores barreiras para estrangeiros no país, envolveu-se em diversas atividades sociais, incluindo um curso de alpinismo, e acabou ficando próximo de uma família alemã, que o apoiou quando, aos 18 anos, teve seu pedido de asilo recusado.
Se a situação legal era precária, a adaptação era cada vez melhor. Terminou a escola e conseguiu um estágio em Frankfurt, onde trabalha até hoje, em uma instituição que dá apoio social, escolar e formação profissional a pessoas em situação de vulnerabilidade e a imigrantes.
Hemat passou quatro anos com uma mochila pronta, em casa, à espera de ser deportado. Só a desfez ao obter a autorização de residência permanente, em 2021. Hoje é cidadão alemão. “É claro que houve momentos ruins. Não é fácil ser imigrante na Alemanha, mas mantive a minha mente aberta.”
De volta ao Afeganistão, o destino do irmão de Hemat foi o Exército. “Ele acabou sendo designado para um grupo de elite, lutou contra o Talibã e teve que fugir para uma cidade distante quando os EUA deixaram o país, há quatro anos”, conta Hemat. “Dizem que não há retaliação, mas é mentira. Eles matam as pessoas que trabalharam para os americanos, para a Otan e para ONGs na frente das famílias.”
Colegas do irmão de Hemat conseguiram asilo no Canadá. Sua opção pelo exílio dentro do próprio país não deu certo, e ele acabou repetindo o roteiro da década anterior, Irã, Turquia e Bálcãs, para chegar àquela Alemanha do irmão, de 2015. No ano passado, porém, teve o pedido de asilo recusado. Vive agora um limbo jurídico, parcialmente confinado em um centro de refugiados perto de Frankfurt. “Ele não pode trabalhar e não pode se ausentar por mais de 72 horas do local”, conta Hemat.
O tom sobre o país muda completamente ao falar do irmão. “Ninguém está vindo por diversão para a Alemanha. Se você soubesse o estresse que é conseguir trabalho, a burocracia . Meu irmão quer trabalhar, ganhar dinheiro, mas o governo alemão diz que ele precisa esperar até que o asilo seja decidido.”
“O novo governo está adotando posições muito duras em relação a pedidos de asilo”, diz Wiebke Judith, porta-voz jurídica da Pro Asyl, entidade que apoia solicitantes de asilo na Alemanha, inclusive o irmão de Hemat. “Uma delas é a recusa de entrada de solicitantes de asilo na fronteira alemã, o que claramente viola a legislação da UE.”
O gabinete de Friedrich Merz, primeiro-ministro desde maio, tinha como promessa de campanha o recrudescimento da política imigratória, em contestada estratégia para fazer frente à extrema direita em ascensão. O controle de fronteiras foi intensificado; programas de apoio a refugiados foram desidratados ou descontinuados. “Um dos mais conhecidos era o de apoio a pessoas em risco no Afeganistão. Foram interrompidos processos de pessoas com documento de admissão expedido”, afirma Judith.
Enquanto Berlim celebrava a Alemanha pela primeira vez não ser o país que mais recebe pedidos de asilo na Europa no primeiro semestre, 2.000 afegãos aguardavam a definição de seus processos no Paquistão. A situação se tornou dramática há algumas semanas, quando as autoridades locais deportaram 211 afegãos, a maioria com um histórico anti-Talibã parecido com o do irmão de Hemat.
A crise chegou a tal ponto que o ministério das Relações Exteriores anunciou uma negociação com Cabul para levar os refugiados de volta a Islamabad.
“Espero que ninguém precise deixar seu país, ir para outro lugar e começar do zero, como eu tive que fazer. Mas precisamos de imigrantes na Alemanha”, diz Hemat, colocando-se na frase como cidadão do país. “Muitas pessoas estão se aposentando, poucas pessoas estão tendo bebês, faltam trabalhadores. Um sistema mais amigável de asilo, nos próximos dez anos, faria bem a todos nós.”