SÃO PAULO, SP, E LAMPEDUSA, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Há cerca de dois anos, no verão de 2023, a ilha de Lampedusa, na Itália, chegou a receber um número de imigrantes maior do que toda sua população em apenas um dia. Principal palco da crise migratória europeia há mais de uma década, o território de 6.000 habitantes já serviu como porta de entrada para mais de 670 mil pessoas na Itália nos últimos dez anos.

De um lado, milhares de turistas ocupam sazonalmente a ilha há décadas. As praias paradisíacas e a possibilidade de lazer longe das metrópoles são os atrativos. É deste mesmo lado, no entanto, que imigrantes do norte africano começaram a aportar na ilha principalmente a partir de 2013. À época, cidadãos de nações como Somália, Eritreia, Guiné-Bissau, Marrocos e Egito eram maioria.

Em paralelo ao movimento de recepção de imigrantes em massa na Alemanha e Áustria, há dez anos, a ilha italiana se tornou o principal local de chegada na União Europeia, especialmente devido à proximidade com o continente africano. Pouco menos de 140 km separam Lampedusa do território da Tunísia, a oeste.

A localização geográfica foi suficiente para estabelecer ali, no território de 20 km² —pouco menos que o distrito da Sé, em São Paulo—, um ponto de chegada sem precedentes. O governo italiano contabilizou mais de um milhão de imigrantes recebidos em seu território desde 2014. Destes, pelo menos 73% chegaram por Lampedusa.

A crise vivida no Mediterrâneo central, após a massiva onda de 2013 a 2017, teve um novo pico em 2023. Naquele momento, cidadãos de Bangladesh, Egito, Paquistão e Peru se tornaram maioria dos recebidos na Itália. Somente em Lampedusa, foram cerca de 130 mil pessoas recebidas —número 21 vezes maior que a população local.

Com a chegada sistemática, organizações civis, em parceria com autoridades policiais italianas, organizaram procedimentos logísticos que hoje garantem a organização na ilha. “Qualquer um que chega em Lampedusa recebe acolhimento da Cruz Vermelha”, afirma à Folha o diretor do centro de imigrantes local, Imad Dalil.

A entidade é responsável pelos voluntários que atuam no ponto de acesso Hotspot —para onde são direcionados os recém-chegados, e de onde partem, em no máximo dois dias, para centros de imigração por toda a Itália. “Nossa capacidade é de 600 pessoas, mas aqui devemos dar acolhimento a todos, independentemente da disponibilidade”, afirma.

A organização do esquema de chegada dos imigrantes, no entanto, não garante um sistema efetivo. Via de regra, as pessoas contratam coiotes —que frequentemente são acusados de tráficos de pessoas— para levá-las até à Europa. No limite entre águas internacionais e italianas, no entanto, os imigrantes devem seguir sozinhos —os responsáveis pelo esquema voltam ao país de origem com o intuito de evitar possíveis acusações no território da Itália.

O esquema orquestrado pelos coiotes deixa, na maioria dos casos, os imigrantes em pequenos barcos —no geral, com estrutura aquém do necessário para navegações do tipo— à deriva. Este foi o motivo para organizações internacionais especializadas em resgates náuticos passarem a atuar na região.

“Uma operação de resgate só está completa quando você desembarca em um lugar seguro, e muitos dos países de origem não o são”, afirma à Folha Isabell Nohr, uma das coordenadoras da ONG alemã Sea-Watch, que atua em salvamentos no mar Mediterrâneo desde 2015.

Segundo Isabell, o governo da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni —e suas respectivas autoridades policiais— não trata de forma adequada a crise migratória que toma Lampedusa. Após mais de dez anos, o sistema em voga “é realmente desumano”, afirma. ” É uma forma superviolenta de acolher as pessoas na Europa.”

Ela denuncia que o Hotspot local funcionaria como um “centro de detenção” para não afastar os visitantes. “As pessoas [que chegam] são colocadas em ônibus, são trancadas no centro de detenção, e então são levadas para a balsa, onde ficam em uma seção separada dos turistas”, afirma.

O voluntário da Cruz Vermelha e diretor do Hotspot, Imad Dalil, não respondeu à afirmação, e a prefeitura de Agrigento, responsável pelo local, não retornou as três tentativas de contato da reportagem. Ativistas da organização Mediterranean Hope, que atuam na assistência aos recém-chegados, afirmaram à Folha que, mesmo não sendo oficialmente reconhecido como prisão, o centro teve suas normas endurecidas após a pandemia de Covid-19 e, desde então, não é permitido que os imigrantes saiam.

“Ao longo dos anos houve um processo de invisibilização das chegadas e do processo migratório”, afirma Valeria Passeri, voluntária da ONG. Segundo ela, Lampedusa se tornou “um túnel por onde as pessoas passam, mas não participam realmente ou não entram em contato” com a comunidade local.

“As pessoas [de Lampedusa] estão realmente cansadas de ver as mesmas tragédias e condições desumanas repetidamente”, diz Giulia Zuretti, também voluntária da Mediterranean Hope. Ela faz referência ao número de mortes no trajeto até a ilha.

Somente até agosto deste ano, o Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) contabilizou ao menos 651 mortos e outros 641 desaparecidos nas rotas do Mediterrâneo. A maior parte foi registrada na região central do mar, onde fica Lampedusa. Desde 2013, são pelo menos 37.078 registros de mortes ou desaparecimentos. Todos os dados são extraídos dos balanços regulares do Ministério do Interior e das autoridades policiais da Itália.

Meloni, no cargo desde 2022, declarou estado de emergência durante a chegada massiva de imigrantes em 2023. A ultradireitista foi eleita com promessas de “fechar os portos” para a imigração no país. A ilha da Sicília, no entanto, segue com os níveis mais elevados de recepção de refugiados na Europa.

Carmine Menna, cidadão de Lampedusa, disse à Folha que o sentimento local é de que o governo considera os imigrantes “intrusos” e não oferece ajuda para integração. Com Meloni, diz ele, a crise piorou e “não tem mais escapatória”.