SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Pular refeições já foi considerado pecado nutricional. Por décadas, a ordem era clara: comer de três em três horas, manter o metabolismo ativo e não dar chance nem de o estômago roncar. Essa regra é quase diametralmente oposta a outra estratégia que na última década ascendeu e hoje conta com uma multidão de entusiastas: o jejum intermitente e suas variadas configurações.

Com a possibilidade de ajudar no emagrecimento e no tratamento de doenças metabólicas (muitas delas bioquimicamente eloquentes), o jejum sempre esteve na cultura e no imaginário populares, associado a práticas espirituais ancestrais. Faquires, iogues e monges são descritos há séculos como capazes de longos períodos de privação alimentar. Sem falar em períodos como no Ramadã, no islamismo, a Quaresma, no catolicismo e o Yom Kippur, no judaísmo, também ligados à privação como meio para uma purificação.

Houve ainda um reforço de peso em 2016, quando o Prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia foi para o japonês Yoshinori Ohsumi por suas descobertas sobre a autofagia -processo celular ativado em situações de privação energética.

O mecanismo, mesmo tendo sido estudado em contextos laboratoriais, sem intenção de tratamento, foi rapidamente associado ao jejum intermitente, ajudando a popularizar a ideia de que longos períodos sem comer poderiam de alguma forma limpar o organismo, catapultando a prática além do que a evidência científica corrente, de forma prudente, permitiria fazê-lo. Também foram espalhadas declarações falsas de Ohsumi, supostamente endossando a prática.

Um estudo publicado neste ano no British Medical Journal trouxe luz à questão. Na meta-análise (estudo que congrega resultados de outros trabalhos), os pesquisadores compararam as principais modalidades de jejum -janelas diárias de alimentação e jejum, como o 16h/8h [em que a pessoa fica 16 horas sem comer e tem uma janela de 8 horas para se alimentar]; dias alternados sem comer ou com intensa restrição; e um ou dois dias semanais de jejum completo ou de forte restrição -com a tradicional dieta de restrição calórica e com a alimentação “à vontade”. Ao todo, foram considerados 99 ensaios clínicos, somando mais de 6.500 participantes.

A conclusão é que o jejum intermitente até funciona, mas não mais do que outras estratégias. Vá lá: no curto prazo, sobretudo na configuração de dias alternados (um dia de rei, outro de faquir), a perda média ficou em torno de 3,4 quilos -contra 2,1 quilos da restrição contínua e 1,7 quilo das janelas diárias (em relação ao grupo “à vontade”). Passados seis meses, porém, tudo fica parecido, na casa dos dois ou três quilos perdidos.

Os benefícios cardiovasculares do jejum também seguem essa lógica: aparecem, mas não se destacam em relação a outras dietas. No curto prazo, alguns protocolos reduzem triglicérides e melhoram o colesterol total e o não-HDL -justamente as frações mais ligadas ao risco de infarto. Só que efeitos parecidos surgem em qualquer dieta que reduza calorias, e as diferenças se diluem em análises mais longas. O que importa para o coração, portanto, é menos o nome da dieta e mais a perda de peso sustentada e a qualidade do vai para o prato.

Outro detalhe que pesa é a disciplina. Num estudo de um ano, a adesão ao jejum despencou de 74% nas primeiras seis semanas para 22% no fim do ano. Entusiasmo no início, abandono depois, como acontece com praticamente qualquer dieta. Para a endocrinologista Maria Edna de Melo, do grupo de obesidade do Hospital das Clínicas da USP (Universidade de São Paulo), isso explica por que o jejum não pode ser considerado panaceia.

“Não tem nenhum estudo que justifique a recomendação de jejum intermitente como forma de melhorar a saúde. O que a gente sabe é que há um consumo excessivo de calorias e que a restrição, seja por jejum ou por outra via, reduz essa ingestão”, diz a médica.

A nutricionista e professora da Faculdade Israelita de Ciência da Saúde Albert Einstein Roberta Machado concorda. “O jejum intermitente engloba planos que apenas definem as horas em que os alimentos serão ingeridos, sem mudança real de hábito. Quando comparado à restrição calórica contínua, não mostra superioridade em perda de peso ou melhora cardiovascular, desde que o déficit calórico seja o mesmo. O problema é que, no longo prazo, a adesão tende a ser menor. Por isso, a ideia de que o jejum é uma prática milagrosa acaba sendo mais um modismo.”

Mas sabemos que modas na seara nutricional podem ser especialmente longevas. “Há 25 anos, comer de três em três horas era uma verdade absoluta. Eu lembro de uma paciente que dizia: ‘eu consigo fazer tudo, menos comer de três em três horas, porque não tenho tanta fome’. Isso acabava desestimulando, porque ela achava que não estava fazendo o adequado e abandonava [o tratamento]. Hoje sabemos que comer mais vezes não aumenta o gasto energético”, diz Melo.

O que permanece sólido, diz, é o conselho (um tanto insosso e sem grandes promessas) de adotar uma dieta equilibrada, com menos ultraprocessados, e mais frutas, verduras e legumes. “O feijão com arroz bem feito funciona muito bem.”

Uma das dicas especialmente úteis e já demonstradas em estudos e que até pode se sobrepor a algumas estratégias de jejum intermitente é não comer próximo da hora de ir dormir. Isso, lembra Machado, pode atrapalhar a qualidade do sono e atuar como um disruptor do ritmo circadiano, trazendo maior risco de obesidade, de doenças cardiovasculares e de resistência à insulina -ligada ao desenvolvimento do diabetes tipo 2.

Protocolos muito rígidos, alerta a nutricionista, criam outra armadilha: falta tempo para frutas, verduras e legumes, abrindo espaço para deficiências nutricionais, por causa da baixa ingestão de fibras, vitaminas e minerais. “Dietas muito restritivas devem ser contraindicadas para indivíduos com transtornos alimentares, pelo risco de desencadear compulsão ou o desenvolvimento de transtornos latentes”, lembra a nutricionista.

Isso sem falar em grupos para os quais o jejum intermitente é absolutamente contraindicado: pessoas com diabetes tipo 1, sob risco de hipoglicemias graves; gestantes e lactantes, vulneráveis a deficiências que afetam mãe e bebê; e crianças e adolescentes, que precisam de energia contínua para crescer e se desenvolver. E mesmo para quem está fora desses públicos, há risco de efeitos adversos além de fome: tontura, constipação, náusea e até mesmo queda capilar.