SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Alguns pais levam suas filhas adolescentes a festivais de música, outros a praias isoladas, alguns vão às compras e tem ainda os que preferem tentar o diálogo aberto como forma de se conectar com esses seres estranhos e cheios de opiniões que às vezes berram por e às vezes repelem a atenção.

No caso do ator David Carradine, que nos anos 1970 era rico, famoso, bonitão e ultra hippie, estrela da série de TV “Kung Fu”, em que interpretava um monge sino-americano que ia ao velho oeste dos Estados Unidos em busca de sabedoria e conexão com seu pai e seu irmão, a escolha de como se conectar com a filha adolescente foi bem mais ousada, trabalhosa, desordenada, criativa.

Para controlar Calista, sua filha rebelde, e mantê-la por perto, prometeu dar a ela o que tinha de mais precioso: o sucesso e uma carreira de artista. Concebeu um longa-metragem sobre a vida da dançarina e cortesã Mata Hari, morta por fuzilamento em 1917, na França, acusada de espionagem e traição, que ele dirigiria e Calista seria a protagonista.

O documentário “Mata Hari”, que teve sua première mundial em Veneza e foi premiado no festival neste sábado, 6, conta a história do filme inacabado de Carradine, mas vai muito além. Com um material de arquivo riquíssimo, o próprio filme inacabado, entrevistas de bastidores com todos os envolvidos ainda vivos -Carradine morreu em 2006, de asfixia acidental, em Bangkok, na Tailândia, aos 72 anos-, o documentário é um dos estudos mais complexos e cheios de camadas e revelações sobre o relacionamento peculiar entre um pai e uma filha.

Também está lá muito sobre a famosa cortesã e suposta espiã holandesa, mas o que realmente surpreende nessa grande e desordenada trama é como a presença daquele ser, uma menina, sua filha querida, é a coisa mais disruptiva que poderia acontecer na vida daquele homem.

O filme também se distingue pela disposição de abraçar a incompletude, tratando as lacunas e ausências não como obstáculos, mas como componentes essenciais da história. É um documentário que se coloca numa estranha tríplice fronteira entre arte, educação e mitologia.

David Carradine havia abandonado seu primeiro casamento com a dançarina Donna Lee Becht, mãe de Calista, nascida em 1967, no começo da carreira de ambos, quando começou a se destacar como ator e decidiu voltar para sua Hollywood natal e tentar a sorte no cinema, como seu pai, John Carradine, e seus irmãos, Keith e Robert.

Calista foi criada pela mãe no norte do Estado de Nova York, onde Donna dava aulas de dança. Mais tarde, a mãe virou coreógrafa de peças da Broadway e as duas voltaram a viver em Nova York. Calista era uma menina linda, carismática e indomável, e, quando a adolescência bateu à sua porta, o relacionamento com a mãe ficou impossível e ela foi morar com o pai.

A casa de David Carradine ficava no lendário bairro Laurel Canyon, onde moravam vários músicos que viviam como se numa comunidade sem lei. Calista abraçou de cara aquele estilo de vida sem regras, sem limites, sem explicações. David nunca nem cogitou a ideia de ser uma autoridade em sua vida, e o relacionamento entre os dois foi se desgastando rapidamente. Daí a ideia de fazer o filme. Pelo menos em um set de filmagem, sua filha, a protagonista da trama, teria que ficar por perto e fazer como ele dissesse.

O longa-metragem seria filmado algumas semanas por ano, acompanhando a transformação da filha, enquanto sua personagem também se transformava nas várias versões de sua curta existência. Mata Hari tinha 41 anos quando morreu, Calista, 13 quando começaram as filmagens.

A produção passou pela Índia, por Amsterdã, pela Alemanha, por Los Angeles e se arrastou por 15 anos, toda bancada por Carradine, que no processo foi à falência algumas vezes. Envolveu produtores alemães, assistentes holandeses, figurantes e coadjuvantes de todos os países. Todo mundo na produção, caótica desde o início, acabava fazendo um papel secundário. Foram horas e horas de filmes, de celulose, de 35 ml que não tinha nem previsão de fim, muito menos data de lançamento.

E, apesar de ser um plano lindo e romântico, o filme, desde o começo, esbarrou em dois obstáculos. O primeiro era o estilo de vida de Carradine, um malucão que andava descalço, fumava maconha e bebia sem distinção entre hora de trabalho e hora de lazer. A segunda, bem mais complexa, é como uma adolescente traduz para si uma ideia de seu pai.

Calista Carradine encarnou Mata Hari sem nenhum método, se entregou completamente à personagem. Ela sabia que, enquanto estava vivendo como a dançarina exótica dos países baixos, tinha 100% da atenção de seu pai. Com sua sexualidade à flor da pele e exaltada pelo projeto, Calista se envolve com seus coadjuvantes, e conforme trocava de romance, o pai adaptava na ficção o que a filha fazia na vida real.

Fora o tempo em que passavam juntos no set, David e Calista viviam como se fossem colegas, em casa não tinha a autoridade do set, e, mesmo em situações em que ela implorava implicitamente por sua intervenção, ela não vinha. Como quando se envolveu com um homem abusivo e que circulava na turma de Charles Manson, líder do grupo que assassinou a atriz Sharon Tate, grávida de nove meses, em 1969.

Os diretores Joe Beshenkovsky e James A. Smith conduzem “Mata Hari” como um caleidoscópio em que vários temas surgem e se misturam a outros, se transformando em uma terceira coisa, talvez não em sua forma final. É um filme sobre um filme, mas também uma investigação histórica, um drama familiar e uma meditação a respeito da fragilidade, tanto da vida quanto da arte.

Carradine surge em diversos momentos comentando seu projeto, com suas falhas e sucessos, por meio de uma recriação vocal autorizada pela família. Suas palavras, ditas décadas depois das gravações originais, dão um tom fantasmagórico ao documentário, ao mesmo tempo em que reforçam uma ideia que está sempre por ali, de como a arte pode tanto preservar quanto distorcer a memória. O recurso, polêmico, não é disfarçado pelos diretores, ao contrário, é reforçado o uso dele, afinal qualquer narração, qualquer conclusão a que se chegue depois de uma coisa vivida, é também um ato de invenção.