CURITIBA, PR (FOLHAPRESS) – Nem ela sabe dizer o quanto a visita ao rio Negro, aos 15 anos, influenciou sua obra. Mas foi o primeiro contato da artista Eva Jospin, hoje aos 50, com “uma natureza que pode sobrepujar”, que a levou a uma investigação longa, com passagem pela Índia, e da qual retira a potência de suas criações.
“Na Europa, tudo que se vê ao redor foi transformado pelo homem. Visitar a Amazônia foi como ver a escala de um deserto, só que cheio de vida e no qual você pode desaparecer”, diz ela em Curitiba, onde expôs no Museu Oscar Niemeyer. Agora, a artista ganha mostra que fica até dezembro na Casa Bradesco, em São Paulo.
Os materiais e técnicas ancestrais interessam a essa filha do ex-ministro da França Lionel Jospin. O título da mostra, “Re-Selvagem”, foi proposto pelo curador Marcello Dantas e trata do processo pelo qual Jospin transforma itens como papelão em obras que lembram as origens da matéria-prima.
A mostra traz instalações que simulam galhos retorcidos, troncos e raízes em diálogo com construções humanas, como promontórios, e tem referências ao barroco italiano. “A celulose do papel, extraída das florestas, volta a ser representada enquanto floresta. Assim, a planta ganha uma segunda vida após o processo industrial”, afirma o curador.
Dantas enfatiza a experiência juvenil da artista com o Brasil. “No rio Negro e na selva brasileira, Eva teve seu primeiro contato com algo diferente do urbano europeu, e esse imaginário da floresta veio para sua estética.”
Não por acaso, a instalação “Selva” é uma das obras monumentais da exposição e chega ao Brasil após passar pela Bienal de Veneza, onde teve destaque. Ela retrata uma floresta feita de papelão corrugado, madeira e fibras naturais.
“Infelizmente, precisamos de uma representação do mundo, seja para interpretar por que chove, ou nossos sonhos, e a arte é uma forma de fazer isso”, diz a artista. Para ela, suas árvores retorcidas e passagens labirínticas falam de fantasia, memória e ancestralidade. “A floresta está presente no imaginário europeu, como nos contos de fadas, e são territórios onde nos perdemos para nos reencontrar.”
A Índia também permeia o trabalho da francesa. Em “Chambre de Soie”, ou quarto de seda, vemos uma obra que foi cenário de uma coleção de alta-costura da Dior, criada em conjunto com artesãos da Chanakya School of Craft, de Mumbai. A instalação tem 3,5 metros de altura e 107 metros de comprimento.
“É uma obra feita por 300 pessoas e repleta de inserções e memórias. O trabalho da Eva precisa ser olhado de perto para se entender. De longe, parece uma imagem, mas de perto são fios únicos”, diz Dantas. Com 400 tonalidades de fios de seda, cânhamo, linho e algodão bordados, a peça foi toda criada à mão.
Em Curitiba, a instalação pôde ser vista de forma circular, de ponta a ponta, no espaço conhecido como Olho do Museu Oscar Niemeyer. Já na Orangerie do Palácio de Versalhes, onde abriu na França em 2024, ficava em duas salas separadas. Em qualquer formato, traz a ideia de obra panorâmica, que pode ser vista de longe, intuindo paisagens e construções, ou bem de perto, quando os fios de seda revelam dourados e outros tons caros à artista.
Como gosta de lembrar, sua arte bebe de várias fontes, e uma delas é do artista Édouard Vuillard, que retratou interiores de forma casual, em tons terrosos e pinceladas difusas.
Trazendo sua própria inventividade, a artista faz um trabalho que remete ao clássico, mas tem o discurso condizente com as dores contemporâneas. “Na França já tivemos muito presente o bordado, que depois foi interrompido, mas na Índia ele continua sendo consumido, como tradição sempre viva. Da mesma forma, os indianos têm uma relação com a arquitetura e a natureza muito especial. Em Mumbai, você vê árvores comendo construções no meio da cidade, o que é muito inspirador. Na França tudo é mais árido.”
A exposição “Re-Selvagem” apresenta ainda outras dez obras do repertório da artista, incluindo vídeos, com destaque para as esculturas em papelão, que revelam outras técnicas que também exigem paciência.
Jospin reconstrói o material em arquiteturas escavadas cheias de nuances, num diálogo com o processo de transformação industrial versus o material orgânico, o uso pelo homem e a força da natureza. Em alguns casos, o molde feito em papelão depois vira uma escultura fundida em bronze.
“Era árvore, virou papel, e volta a ser árvore na mão do artista, ou seja, ela ‘resselvageriza’ o que foi industrializado pelo homem”, diz Dantas. “Re-Selvagem é um chamado ao retorno da matéria à floresta, da técnica à mão, do olhar à imaginação. Jospin nos lembra que, mesmo aquilo que foi domesticado, cortado e transformado pode, pela arte, reencontrar sua força e vitalidade selvagem -e nos conduzir de volta à imensidão misteriosa que carregamos por dentro.”
RE-SELVAGEM – NATUREZA INVENTADA
Quando De 6 de setembro a 7 de dezembro. De terça a domingo, das 12 às 20h
Onde Casa Bradesco – Alameda Rio Claro, 190, São Paulo
Preço R$50; gratuito nos dias 6 e 7 de setembro
Classificação Livre