SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Cerca de 3,5 bilhões de pessoas, ou mais de 40% da população mundial, têm como primeiro idioma alguma das línguas da família indo-europeia, a mais importante do planeta. As origens desse gigante linguístico estão ficando cada vez mais claras: ele nasceu entre pastores nômades das estepes entre as atuais Ucrânia e Rússia e deu origem a culturas tão diferentes quanto celtas, nórdicos, romanos, gregos, persas e indianos.

A síntese mais atualizada dessa história está no livro “Proto: How One Ancient Language Went Global” (“Proto: Como uma Língua Antiga se Globalizou”), publicado neste ano pela jornalista de ciência britânica Laura Spinney. A expansão dos indo-europeus de leste a oeste da Eurásia costumava ser atribuída a uma vantagem militar óbvia -a domesticação do cavalo, que teria transformado o grupo nos primeiros guerreiros montados da história-, mas, para a autora, o processo foi multifatorial.

Os cavalos podem até ter ajudado, mas o segredo do sucesso deles parece ter dependido também da dinâmica das doenças infecciosas, em especial a peste bubônica, e principalmente de redes de alianças costuradas numa escala de milhares de quilômetros, disse Spinney à reportagem.

“O fator comum em todos os lugares que eles colonizaram é esse aspecto social que levaram consigo como povo nômade. Foi basicamente o que permitiu que eles se expandissem e mantivessem relações sociais por longas distâncias e longos períodos de tempo”, explica ela.

“Só para dar um exemplo, eu estava conversando com um geneticista outro dia, e ele me disse que era possível ver com muita clareza no DNA antigo que, 5.000 anos atrás, com a chegada e a expansão desses nômades na Europa, as conexões genéticas se tornaram muito mais espalhadas do que tinham sido nas comunidades agrícolas do Neolítico [época imediatamente anterior, quando os habitantes da Europa falavam outros idiomas, de famílias linguísticas hoje desaparecidas].”

A reconstrução do chamado idioma protoindo-europeu (daí o “Proto” do nome do livro) e da trajetória de seus falantes ao longo dos milênios é um dos casos mais fascinantes de pesquisa interdisciplinar da história.

A partir do fim do século 18, estudiosos começaram a se dar conta de que havia semelhanças sistemáticas de vocabulário e estrutura do idioma (a sintaxe, por exemplo) entre línguas como o grego, o latim, o sânscrito -idioma clássico da Índia- e as formas mais antigas das línguas germânicas e célticas, cujo descendentes atuais incluem o alemão e o irlandês, respectivamente.

Quanto mais a linguística histórica e as descobertas arqueológicas avançavam ao longo dos séculos 19 e 20, mais ficava claro que essas semelhanças abrangiam também idiomas hoje minoritários, como o armênio, o albanês e o lituano, as línguas eslavas (do tcheco ao russo), e falares de povos poderosos na Antiguidade, mas que acabaram completamente extintos, como o hitita, na atual Turquia, e o tocariano, nas fronteiras da China.

Em todos esses idiomas, os linguistas identificaram um padrão de semelhanças e transformações por meio de mudanças sistêmicas, ligadas à maneira como funciona o aparato produtor de sons da boca humana.

Havia, por exemplo, a chamada lei de Grimm, que transformou palavras que começavam com a consoante “p” em idiomas como o latim (fonte de vocábulos como “pai”, “pé” e “peixe” em português) em palavras que começam com “f” nas línguas germânicas, como o inglês (“father”, “foot” e “fish”, respectivamente). A explicação envolve física básica: basta deixar o ar escapar por uma fresta da boca na hora de pronunciar um “p” que ele se transforma num “f”.

Esses processos, muito parecidos com mutações no DNA de espécies aparentadas, são um indício de uma origem comum para todos esses idiomas, embora eles também tenham emprestado palavras e estruturas de outras línguas com a passagem do tempo. A questão era descobrir de onde elas tinham partido originalmente.

Uma pista, conforme explica Spinney em seu livro, é o vocabulário comum. Os idiomas indo-europeus quase sempre compartilham palavras que designam “cavalo”, “gado”, “cereal”, “cobre/bronze” e “roda/carroça”, por exemplo, indicando uma cultura ancestral que era pastoril (e ocasionalmente plantava cereais), conhecia alguns metais e dominava o uso de carroças.

Esse tipo de cultura era comum nas estepes em torno dos mares Negro e Cáspio a partir de uns 6.000 anos atrás. Uma das hipóteses era que a domesticação do cavalo em algum lugar dessa região teria impulsionado a expansão dos protoindo-europeus, já que o animal era o equivalente dos tanques de guerra na Antiguidade, e os primeiros a domá-lo teriam uma vantagem competitiva na mobilidade e nos combates.

O momento e o local exato da domesticação dos cavalos e de seu uso militar ainda estão em aberto. Mas, mesmo sem um consenso sobre esse tema, a última década de pesquisas com DNA antigo, uma tecnologia que tem se tornado cada vez mais precisa e de fácil aplicação, parece ter batido o martelo sobre a origem dos proto-indoeuropeus.

Tudo indica que um grupo das estepes conhecido como cultura Yamnaya, identificado a partir de 5.300 anos antes do presente, está na raiz desses idiomas. Os dados genéticos mostram que populações espalhadas tanto pela Europa quanto por boa parte da Ásia receberam grandes aportes do DNA associado ao povo Yamnaya, junto com modificações culturais, como a mobilidade pastoril e o uso dos cavalos, compatíveis com o vocabulário comum indo-europeu.

O processo não parece ter acontecido de maneira uniforme em todos os lugares, é claro. Na Europa, por exemplo, a chamada “ancestralidade da estepe” é mais comum, de modo geral, no norte e no oeste do continente (Escandinávia, Reino Unido etc.), e menos prevalente no sul e no leste (Espanha, Grécia e outros países).

Para a autora, as razões por trás das diferenças ainda não estão claras. Segundo ela, os dados arqueológicos talvez indiquem que o processo de miscigenação no norte do continente foi bem mais violento do que no sul. “Há um elemento de especulação no que estou dizendo a respeito disso, mas é algo consistente com as assinaturas genéticas. Sabemos que povos podem interagir de muitas maneiras diferentes”, pondera ela. Além disso, em alguns casos, a transmissão de formas da peste bubônica, trazidas da estepe, pode ter dizimado os grupos do Neolítico europeu, enquanto os nômades já tinham algum tipo de resistência à doença.

De qualquer modo, uma vez instalados em suas novas terras, os indo-europeus fortaleceram seu domínio com uma cultura guerreira e patriarcal, na qual chefes mantinham a lealdade de seus subordinados por meio de um sistema de obrigações recíprocas e divisão dos despojos. O que ainda não está claro, porém, é como o processo começou, diz a autora.

“Para mim, um dos mistérios mais intrigantes é por que eles deixaram seu vale ancestral, em algum lugar na região dos rios Don e Dnieper, e resolveram criar esse novo modo de vida. Deve ter sido incrivelmente perigoso aprender a viver no meio da estepe. Algo pode ter empurrado esses grupos para fora, ou eles podem ter sido atraídos por algo. Talvez novas metodologias ajudem a responder essas perguntas, embora a guerra na Ucrânia tenha deixado tudo mais difícil”, lamenta ela.

PROTO: HOW ONE ANCIENT LANGUAGE WENT GLOBAL

Preço R$ 116,81 (ebook)

Autoria Laura Spinney

Editora Bloomsbury Publishing