SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – José e Renato (nomes fictícios) apresentaram à Soraia Lanzelotti, médica de família e comunidade, queixas de dores na coluna e hemorroida. A consulta de cada um durou cerca de 25 minutos. Ambos esclareceram dúvidas de saúde e foram orientados sobre exames e medicações.

Os dois homens cumprem pena em unidades prisionais do estado de São Paulo e receberam atendimento médico por intermédio do Tele SAP, em operação desde junho de 2024.

O projeto integra o Programa de Pesquisa e Inovação em Saúde Digital do Estado de São Paulo, firmado entre a SAP (Secretaria de Administração Penitenciária), a Secretaria de Estado da Saúde, o Hospital das Clínicas da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) e Fundação Faculdade de Medicina. Por meio da parceria, detentos têm acesso a teleconsultas nos níveis de Atenção Básica e especializada.

As consultas são agendadas, mas quando é necessário há encaixes. Para os teleatendimentos, os presos são retirados dos pavilhões e encaminhados a uma cela na área da enfermaria.

Os 23 médicos -servidores ou contratados pelo Hospital das Clínicas- atendem os detentos em cabines e baias com computador, mesa e cadeira no Centro Líder de Inovação em Saúde Digital do HC, em Perdizes (zona oeste). O Tele SAP funciona de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h.

Durante as consultas, os profissionais não abordam questões que envolvem a vida pessoal nem o crime cometido pelo paciente.

As prescrições de medicamentos e os pedidos de exames são enviados após os encontros, via email, a uma pessoa de referência da unidade prisional -policial penal ou profissional de saúde, se houver. Tudo é anexado ao prontuário do paciente. A receita vai para a farmácia da unidade, que dispensa a medicação conforme a rotina do setor.

“Por questões de segurança, atendemos um seguido do outro e depois mandamos os documentos -receita, relatório, prontuário, pedido de exame. Então, atendemos, conversamos com eles, vemos o que eles precisam e depois fazemos os envios a alguém de referência por email -não necessariamente quem acompanha os atendimentos “, explica Soraia Lanzelotti, coordenadora médica do Tele SAP.

Nas unidades onde há profissionais de saúde -89 delas (dados do 1º semestre de 2025)-, são realizados exames físicos, como aferição de pressão arterial e ausculta para avaliar coração e pulmão, tudo sob supervisão do médico via telemedicina. Para as demandas de especialidade, como um exame ou cirurgia, a vaga é regulada pela Cross (Central de Regulação de Ofertas de Serviços de Saúde), assim como ocorre com qualquer paciente fora do sistema prisional.

Os casos de maior complexidade são encaminhados à rede pública e ao Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário, segundo a SAP. A maior parte das queixas é simples, mas há locais com pacientes mais complexos.

“Temos duas unidades em Sorocaba, por exemplo, em que os pacientes são idosos. Há pessoas com diabetes, cardiopatia, que já infartou, que teve AVC e ficou com sequelas, e questões relativas ao envelhecimento. Nos CDPs, os centros de detenção provisória, são pacientes que deram entrada recentemente no sistema prisional, então há muitos traumas, casos de baleados, fraturados, esfaqueados, que estavam em fuga, caíram e se machucaram”, comenta.

No projeto há cerca de quatro meses, Mateus Silva de Oliveira, geriatra e médico de família e comunidade, afirma que nos CDPs ocorrem mais atendimentos de demanda espontânea, doenças agudas, problemas de pele, ISTs (infecções sexualmente transmissíveis). Nas penitenciárias, prevalece um perfil idoso, com acompanhamento e descompensação de doenças crônicas.

“Saúde mental percorre todas as unidades. É demanda bem importante, grave e bem característica desta população. Questões hematológicas também acontecem bastante nas unidades”, completa o médico .

Segundo Soraia Lanzelotti, a maioria dos presos possui ensino fundamental incompleto e pouca informação sobre saúde, alimentação e condições de higiene. O atendimento também serve para quebrar algumas crendices que eles carregam.

“Há pessoas que nunca passaram no médico na vida, a não ser em pronto-socorro, e nunca fizeram um exame. Eles têm várias crendices como ‘se eu comer isso, vou ter doença de pele’, ‘cadeia é um lugar sujo, então vou tomar banho com sabão de coco'”, afirma.

De acordo com Maria Cristina Coimbra Lages Balestrin de Andrade, coordenadora do Programa Saúde Digital Paulista da Secretaria de Estado da Saúde, para viabilizar o projeto, foi necessário implantar o prontuário eletrônico nas unidades.

Pelo Tele SAP, das 180 unidades prisionais, 68 ofertam consultas de atenção básica e 63 de especialidade (não necessariamente são as mesmas).

De junho de 2024 até 27 de agosto de 2025, foram realizados 32.530 atendimentos de atenção básica para 22.539 pacientes com 88% de resolutividade.

Na atenção especializada, no mesmo período, foram 3.685 atendimentos para 3.085 privados de liberdade –24,4% em psiquiatria, 18,8% em ortopedia, 10,5% em cardiologia, 9% em endocrinologia, 8,9% em infectologia, 7,6% em neurologia e 7,4% em gastroenterologia (demandas de maior procura). A taxa de resolutividade nas especialidades é de 86%.

Apesar de o projeto ser limitado, há a expectativa de incorporar, até o início de 2026, exames que possam ser feitos nas próprias unidades prisionais. O objetivo é que o Tele SAP se transforme em um programa dentro da saúde digital, segundo Maria Cristina.