SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nas páginas que abrem “Te Dou Minha Palavra”, a escritora Noemi Jaffe se narra olhando para o espelho. Vê em seu rosto, hoje de 63 anos, rugas que são “como rasgos”. “Alguém disse que a vida é um processo inflamatório, e vejo a vida queimando, a pele dobrada e redobrada, vincada de tanto uso.”

O contraste com a maneira como ela se sente hoje engatilhou o processo de reviver uma Noemi de meio século atrás. “A gente vai virando meio adolescente com 60 anos”, diz, enérgica, sentada na cadeira de uma das salas da Escrevedeira, centro de cursos de escrita que abriu há quase dez anos em São Paulo.

“É uma idade libertadora. Você não tem mais amarras com ninguém e pode realizar o que não fez na adolescência porque tinha que ser adulto, trabalhar, ganhar dinheiro, ter casa, filho, casamento. Agora pode falar: eu quero pirar.”

Uma das principais escritoras brasileiras em atividade, a paulistana não se constrange em definir esse livro como um tipo de culminação de toda a sua trajetória, usando as palavras que maneja com tanta destreza para arquitetar uma espécie de autobiografia.

Mas como ela mesma escreve, “histórias, memórias, é difícil separá-las”. Então são igualmente relevantes os fatos narrados e os livros que leu, discos que surrupiou, piadas que escutou da família. E são lembranças compostas das diversas línguas que a moldaram.

Passam pelo iugoslavo que seu pai adorava ostentar, o hebraico que ela sentia precisar na escola para falar com Deus, o húngaro que era a “língua do Diabo” para Guimarães Rosa e também a língua de uma juventude mais antiga -a de sua mãe, Lili, personagem central de seu projeto literário em obras como “O que os Cegos Estão Sonhando?”.

Os pais são, novamente, parte fundamental da narrativa agora. Judeus radicados no Brasil após escapar o inominável do Holocausto, ambos encarnam uma dualidade: se o pai exercitava a memória quase como questão de honra, assumindo a incumbência de se lembrar para nunca repetir, a mãe sempre pendeu mais à libertação representada pelo esquecimento.

“Para o meu pai, ter sobrevivido era também um fardo, a obrigação vitalícia de lutar pelo que ele mesmo não sabia se valia a pena. Para a minha mãe, a salvação se deveu ao Destino e, no final da vida, ela dizia sofrer mais do que na guerra, já que a lembrança doía mais que o fato.”

A filha não declara um lado explícito entre os dois na narrativa, mas nem precisa -ela está escrevendo um livro de memórias.

“Quem quiser nascer precisa destruir um mundo”, diz a frase do livro “Demian”, do alemão Hermann Hesse, que conversa diretamente com o processo de amadurecimento narrado por Noemi.

Qual o sentido, então, de escrever um livro tão empenhado em rememorar esse mundo que a autora destruiu há tanto tempo? “Para entender o que provocou o desejo de destruição desse mundo, que é um desejo permanente, inclusive atual. É o que também estou fazendo ao escrever esse livro. Descobrindo a origem desse querer estar sempre rompendo.”

Isso não se confunde com desgosto ou desprezo pelo passado -basta ver o afeto que derrama de cada página-, mas se explica porque esse mundo com que a autora rompeu a constrangia em um tradicionalismo severo, antônimo da liberdade. Que também é capaz de render risadas.

Em uma das muitas anedotas do folclore judaico pontuadas durante o livro, Noemi conta da viagem de um rabino e seu discípulo. Eles param para dormir numa hospedaria e o mais jovem pede para o empregado do lugar o acordar bem cedo para pegar um trem.

Sacudido ainda de madrugada, o discípulo se veste sonolento e, por engano, pega a roupa do rabino em vez da sua. Chegando à estação de trem, se vê no espelho e fica paralisado. “Que criado idiota! Pedi que ele me acordasse e, no fim, acabou acordando o rabino.”

A situação combina com aquela cena de Noemi vendo sua própria imagem sem se reconhecer. E a escritora se diverte com a comparação.

“Essa disparidade entre o que você sente e o que você vê é muito chocante. E as duas coisas estão certas, tanto meu sentimento de juventude quanto a realidade biológica. O que eu vejo no espelho é a aproximação da morte. Mas eu me sinto mais viva.”

TE DOU MINHA PALAVRA

Preço R$ 79,90 (208 págs.); R$ 29,90 (ebook)

Autoria Noemi Jaffe

Editora Companhia das Letras