SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A jornalista Jiang Xue, 51, decidiu deixar a terra natal, a China, após escrever reportagens críticas ao Partido Comunista Chinês e, em seguida, sentir-se intimidada pelas autoridades do regime. Atualmente morando nos Estados Unidos, ela aponta semelhanças entre atos de Donald Trump e movimentos surgidos em seu país que aprofundaram o autoritarismo sob a justificativa de combater inimigos internos.
Jiang afirma que há enfraquecimento drástico das instituições americanas sob o governo do republicano. Também alerta para o aparecimento do que chama de sinais de tendências autoritárias.
O cenário atual permite, inclusive, traçar paralelos com a história de seu país, diz ela. A jornalista menciona familiaridade com a Revolução Cultural Chinesa (1966 – 1976), a campanha iniciada por Mao Tse-tung (1893 – 1976) para eliminar ideias consideradas contrarrevolucionárias e que resultou na morte de centenas de milhares de pessoas, de acordo com pesquisadores independentes.
“O culto à personalidade promovido pelos apoiadores de Trump, incluindo seus subordinados, tem algumas semelhanças, embora não todas, com a Revolução Cultural. No entanto, os EUA têm uma imprensa livre e um Judiciário independente, e o contexto dos eventos ainda é diferente”, afirma Jiang, que participará do Festival Piauí de Jornalismo, nos dias 6 e 7 de setembro, em São Paulo.
“Espero que o princípio de freios e contrapesos continue a funcionar, e que o sistema democrático possa desempenhar seu papel na correção de erros, permitindo que os EUA voltem a um estado normal.”
A Revolução Cultural foi um dos períodos mais sangrentos da história chinesa, no qual milhões de pessoas rotuladas de revisionistas, burguesas e contrarrevolucionárias foram assassinadas. Entre as vítimas estavam intelectuais, antigos líderes comunistas e qualquer chinês identificado com “hábitos decadentes”, o que podia incluir a leitura de clássicos ocidentais ou contatos com o mundo capitalista.
A jornalista se mudou para os EUA no começo de 2023. Nos últimos meses, diz ter ficado assustada com as políticas de Trump, incluindo o fechamento de várias agências estatais e emissoras financiadas pelo governo, sua postura em relação à imigração, e muitos outros de seus atos internos e internacionais.
Cerca de sete meses após a volta ao poder, Trump acumula decisões controversas, e analistas e estudiosos avaliam que o presidente coordena uma derrocada da democracia americana. Ataques a Judiciário, empresas de mídia e escritórios de advocacia têm sido frequentes e exitosos. Ainda durante a campanha, o republicano falou em usar o Exército contra um “inimigo interno”. E durante a Presidência, tem feito embates contra universidades acusadas por ele de disseminarem ideias de extrema esquerda.
“Estou muito preocupada com a situação nos EUA. Vindo de um país como a China, que é autoritário, sou sensível a quaisquer sinais de um potencial movimento em direção ao autoritarismo. O sistema democrático americano, a liberdade de expressão, a independência judicial valores esses que são cruciais, juntamente com sua abertura à imigração parecem estar sob ataque na era Trump”, diz Jiang.
Ela afirma já ter sentido na pele os efeitos da repressão à dissidência. Em maio de 2020, foi levada à delegacia porque escreveu um texto com críticas à política de lockdown na China. Só foi liberada depois de cinco horas de interrogatórios. “A polícia bateu na minha porta no mesmo dia [da publicação do texto] e me ameaçou constantemente, dizendo que, se eu continuasse escrevendo, perderia minha liberdade”, diz.
A jornalista afirma que a censura em seu país aumentou na era de Xi Jinping, o atual líder chinês e que, em 2023, assegurou o terceiro mandato consecutivo. Foi a partir de 2015, diz, que a imprensa passou a enfrentar “restrições cada vez maiores”, o que gerou frustração e mudou sua forma de trabalhar.
Jiang é formada em Direito, mas optou por atuar no jornalismo porque considera que, nesta área, pode servir aos interesses da população muitos de seus colegas da faculdade foram empregados pelo poder público e têm pouca independência. Ela se especializou em temas jurídicos e passou a cobrir casos relacionados a abusos policiais e penas de morte, prática legalizada no país asiático.
De 1998 a 2014, trabalhou para o Huashang Daily, que chegou a ter meio milhão de assinaturas. No início, diz, havia certa liberdade. Após Xi assumir o poder, entretanto, o regime intensificou o controle sobre a imprensa, e ela então decidiu pedir demissão para atuar de forma independente, publicando conteúdos no WeChat, a principal rede social chinesa, e também em veículos com sede em Hong Kong.
A imprensa na China, acrescenta Jiang, “foi morta” pelo regime, e só resta escrever em espaços marginais, com alcance limitado. “Alguns jornalistas independentes, como Zhang Zhan e Chen Qiushi, foram presos. Normalmente, quando você escreve uma reportagem crítica, você é interrogado pela polícia. Se as coisas ficarem mais sérias, você pode acabar na cadeia”, diz. “Como jornalista independente, eu estava constantemente sob o escrutínio da polícia e sentia constantemente o perigo de perder minha liberdade.”
Morando nos EUA, ela hoje diz sentir um estranhamento, já que continua escrevendo conteúdos para a população chinesa, seja para quem está no exterior ou quem se arrisca utilizando um serviço de rede virtual privada (VPN, na sigla em inglês), o que é proibido por Pequim. Mas, diz, não pode voltar ao país.
Também por isso, a situação atual dos EUA a deixa inquieta. E afirma que, diante dos acontecimentos recentes, muitos chineses antes críticos passaram a considerar Xi um bom político ao fazer comparações com Trump. “[O governo do republicano] tem alimentado um sentimento nacionalista entre o povo chinês.”
Jiang Xue é uma das convidadas do Festival Piauí de Jornalismo, em 6 e 7 de setembro, em São Paulo, com o tema “A contra-história repórteres que bagunçam os mitos nacionais”. Ela fala no sábado (6), às 18h. Ingressos a partir de R$ 650 (inteira).