SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um sindicalista pacato que faz oposição ao governo sai para dar um depoimento à polícia. Desaparece sem deixar registros. Sem saber o que fazer, sua mulher tenta proteger os filhos conforme seu país vira um estado de exceção cada vez mais permanente, de burocracia cada vez mais turva. Direitos que pareciam garantidos vão se esfarelando no ar.

Não é uma narrativa histórica sobre a ditadura militar —muito desse enredo parece, por exemplo, com os anos de chumbo de “Ainda Estou Aqui”. Mas “A Canção do Profeta”, romance celebrado do irlandês Paul Lynch, tem inspirações bem contemporâneas.

O livro chega agora ao Brasil pela editora DBA após vencer o prêmio Booker de 2023 —a mais importante distinção da literatura em língua inglesa. Começou a ser escrito cinco anos antes, quando seu autor sentia “uma enorme mudança” nos ventos da política.

“Era como se tivéssemos cruzado um ponto de não retorno. Houve a maior crise de refugiados na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, o brexit, Donald Trump. Eram mudanças sísmicas”, diz o romancista de 48 anos, por videochamada. “Comecei a tentar ver em meio ao caos, enxergar aonde aquilo ia dar.”

A erosão da democracia por dentro, um dos grandes assuntos da ciência política do nosso tempo, vem se tornando fonte de inspiração também para literatura distópica como a escrita por Lynch, uma ficção especulativa que se alterna com habilidade entre a tensão eletrizante e a melancolia paralisante.

Podemos falar em distopia porque o livro se ambienta numa Irlanda que passa longe de sofrer hoje o que ele conta no livro —um governo de exceção que, página a página, vai se desdobrando em um militarismo autoritário, recorrendo ao escracho de “inimigos do povo” e deflagrando uma guerra civil.

Tudo vai crescendo de forma orgânica —e por isso horripilante, ao estilo das democracias que vêm sendo carcomidas sem o velho recurso ao tanque na rua. No livro, a protagonista Eilish Stack começa a ter a “sensação de que agora ela está vivendo em outro país, essa sensação de que um caos está se abrindo, que esse caos está chamando a todos eles para sua boca”.

De repente ela vê garotos da idade de seu filho segurando metralhadoras. Vê uma jovem incumbida de executar as ordens do novo governo e pensa que ela “não parece má pessoa”, que poderia ser “uma garçonete limpando balcões, uma contadora trainee contando as horas para o almoço”.

O interesse de Lynch não é relatar o que foi, mas o que pode vir a ser. Escapando à sugestão de um título que fala em “Canção do Profeta”, ele diz que escritores não são visionários, mas talvez tenham sensibilidades mais vigilantes, despertas para as mudanças nas placas tectônicas do mundo.

Débora Tavares, que pesquisou a obra de George Orwell em seu doutorado em literatura inglesa pela Universidade de São Paulo, define a distopia como “uma ferramenta imaginativa de especular, num futuro distante, algo que está aparecendo no presente”.

O recurso funciona como uma “caixa de ferramentas” para ajudar o próprio autor a apreender melhor as fissuras abertas por momentos de crise econômica ou política. “A estrutura da literatura faz sentir novas coisas. Você reordena e exagera de propósito os fatos, que não precisam estar na ordem do noticiário.”

A fala encontra eco numa observação de Lynch. “Os seres humanos não respondem emocionalmente a fatos. Respondem a histórias. É assim que funcionamos.”

“As pessoas começam a ler um livro sobre pessoas brancas em um país ocidental que colapsa e, a certa altura, percebem que a família Stack também somos nós, não são apenas eles. São as pessoas que você está vendo no noticiário, subindo em barcos, escapando de zonas de guerra, aquelas pessoas a que você nem sempre presta atenção. E de repente você está na pele delas.”

O irlandês diz ter feito um esforço deliberado para não identificar movimentos políticos específicos no levante autoritário que domina seu livro, para ressaltar a universalidade da história. Por isso, afirma que em diversos países os leitores respondem a seu livro falando “você contou a nossa história”.

Aqui vale pontuar que há uma cena em que a irlandesa Eilish Stack passa na rua por um carro estampado com dois adesivos —um diz “a melhor defesa é o cidadão armado” e outro, “abaixo a ditadura do Judiciário”. Difícil não se lembrar do Brasil.

Aliás, ficções brasileiras recentes buscam ser alegorias distópicas da ascensão de Jair Bolsonaro ao poder e o movimento anticiência que o acompanhou —Débora Tavares elenca, por exemplo, “A Nova Ordem”, do paulista Bernardo Kucinski, e “A Extinção das Abelhas”, da gaúcha Natalia Borges Polesso.

A cearense Gisele Sousa Santos, de 29 anos, não se furtou a escrever, ela mesma, sua distopia. Assinando com o pseudônimo Kinaya, a jovem se inspirou em suas angústias com sua cidade, Quixadá, para elaborar “Eu Conheço Uzomi”, lançado de forma independente em 2021 com recursos da Lei Aldir Blanc.

Ao ver o dono da escola em que ela trabalhava se alinhar ao novo prefeito conservador de seu município interiorano, a escritora começou a elaborar um universo de fantasia em que um governo totalitário se junta a big techs num plano para fechar serviços básicos de saúde e educação.

“Comecei a escrever ficção científica ao perceber essa extrema direita chegando perto de mim”, diz ela. “Foi no momento em que percebi que isso não era só uma notícia de jornal, era algo que iria impactar nosso dia a dia.”

Todas as entrevistadas pela reportagem afirmam que o momento é fértil para a distopia, um gênero que costuma ser muito mobilizado por medo ou, nas palavras da escritora e tradutora Jana Bianchi, “por um lugar de ódio”.

Especialista em fantasia e ficção científica, Bianchi lembra que uma vez foi convidada por uma organização americana para abrir um edital, na revista que tocava com o companheiro Diogo Ramos, para veicular histórias que exaltassem “a força da democracia”.

“Recebemos pouquíssima coisa, de qualidade baixa”, conta ela, se divertindo. Seus colegas escritores diziam que simplesmente “não conseguiam pensar” em tramas com esse lado edificante.

A autora aponta que existe na literatura um movimento crescente chamado “solarpunk”, que define como uma espécie de “anti-Black Mirror” buscando os lados positivos da evolução tecnológica. “Mas o interesse nisso é menor que nas distopias.”

O reconhecimento do pessimista “A Canção do Profeta” pelo prêmio Booker é sinal disso —e a própria trama mostra que isso não vem de hoje.

Um dos personagens mais memoráveis do romance é o pai de Eilish, o cientista Simon, que funciona como voz da razão para uma protagonista em desespero, mas sofre de demência senil. A certa altura, ele diz algo que remete a “1984”, o clássico de Orwell, ao discutir a estratégia do governo que tomou o poder.

“Se você diz que uma coisa é outra coisa e diz isso vezes suficientes, então tem que ser isso mesmo”, afirma o idoso. “As pessoas aceitam aquilo como se fosse verdade. A ideia é velha, claro, não tem nada de novo nisso, mas você está vendo acontecer na época em que vive, e não em um livro.”

A CANÇÃO DO PROFETA

– Preço R$ 88,90 (304 págs.)

– Autoria Paul Lynch

– Editora DBA Literatura

– Tradução Rogerio W. Galindo