SÃO PAULO, DF (FOLHAPRESS) – Natural de Jarinu, no interior de São Paulo, Rhuanito Soranz Ferrarezi, 46, conviveu pouco com Wilson, seu pai biológico. Quando ele tinha dois anos, sua mãe, Juraci, se separou do marido, se mudou para a capital do estado e conheceu o segundo companheiro, Marco Aurélio, quando começou a trabalhar em uma loja de departamento.

É ele quem Rhuanito considera seu pai. “Fui educado por ele, pelos meus avós (pais de Marco Aurélio), faço parte desse berço familiar”, diz o hoje engenheiro agrônomo que vive em nos Estados Unidos. O casamento durou cerca de oito anos e deu a Rhuanito um irmão. Vieram mais quatro quando Marco Aurélio passou a viver com uma nova mulher.

O processo de adoção de Rhuanito por Marco Aurélio, contudo, nunca foi formalizado. Quando buscaram legalizar o vínculo, o engenheiro já tinha mais de 18 anos e o processo sairia caro demais para o que podiam arcar na época. Vítima de um acidente cardiovascular quando tratava um linfoma, Marco Aurélio morreu em 2011.

Como um meio para que essa paternidade seja oficializada, Rhuanito processa hoje os irmãos de criação pelo reconhecimento da fraternidade socioafetiva entre eles. O engenheiro diz que os irmãos concordaram de início a colaborar, mas mudaram de ideia quando souberam que isso implicaria a entrada dele na divisão de heranças. Apenas seu irmão por parte de mãe, Lucas, o apoia na ação.

Expressão consagrada pelo direito de família brasileiro, a socioafetividade trata dos vínculos de filiação ou parentesco baseados no afeto e na convivência, e não apenas na consanguinidade.

“É uma consequência da evolução do pensamento jurídico que trouxe o afeto para o centro da cena jurídica, que se tornou um valor e um princípio do direito”, explica Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).

As buscas pela formalização de laços de irmandade vem na esteira dos casos maternidade e da paternidade socioafetivas, que têm crescido no Brasil.

Segundo Pereira, os casos envolvendo irmãos de criação ainda são escassos, porque poucas pessoas sabem que esse tipo de reconhecimento é possível. São cenários familiares nos quais os pais já morreram, o que impede o reconhecimento da filiação socioafetiva, ou há o desejo de mudar o rumo das repercussões patrimoniais.

Tribunais brasileiros têm chancelado a possibilidade. Em 2022, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) cassou uma decisão local que havia extinguido um processo no qual dois irmãos consanguíneos buscavam a declaração legal do vínculo com uma irmã de criação.

Na decisão, o ministro relator afirmou que o atual Código Civil, ao determinar parentesco como laço de sangue “ou outra origem”, dá margem para uma interpretação ampla do conceito de família, podendo incluir a fraternidade socioafetiva, sem a necessidade de reconhecimento prévio de filiação.

Na proposta de reforma do Código Civil que tramita no Senado, a socioafetividade já aparece como um dos critérios de definição de parentesco.

No começo deste ano, o Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu o laço de irmandade entre dez pessoas criadas juntas com um homem que havia falecido em 2023. Acolhido pela mãe biológica dos solicitantes do pedido quando tinha cinco anos, ele nunca tivera a adoção reconhecida.

De acordo com a sentença, o conjunto de provas, como o fato de ohomem estar sepultado no jazigo de parentes, indicava que ele fazia parte da família.

O reconhecimento da fraternidade, contudo, pode também implicar deveres, segundo o presidente do IBDFAM, como a possibilidade de pagamento de pensão alimentícia. “Entre irmãos há um dever de solidariedade que pode gerar um obrigação alimentar”, diz Pereira.

Com a exceção de Lucas, os irmãos de criação Rhuanito afirmam que a relação entre eles e o engenheiro não configura um cenário de fraternidade socioafetiva. Dizem que após a morte de Marco Aurélio e a mudança do engenheiro para os EUA, convivência minguou, o vínculo se resumiu a poucas trocas de mensagens no grupo da família e que o engenheiro retomou contato de forma conveniente após a conclusão de inventário do pai.

Rhuanito diz que, como não tem filhos, o processo reconhecimento da fraternidade também abre a possibilidade de que seus irmãos de criação um dia herdem seus bens. Ele afirma que sempre os tratou como irmãos e que todos passam as datas comemorativas sob o guarda-chuva de seus avós. “A família inteira junto”, diz.