FOLHAPRESS – Aos fãs antigos de Joan Didion, “Para John” pode soar como o material bruto que deu origem aos seus dois livros de memórias: “O Ano do Pensamento Mágico”, de 2005, sobre a morte de seu marido, e “Noites Azuis”, de 2011, uma reflexão sobre a vida e a morte de sua filha.

“Para John” é um compilado de pouco mais de 150 páginas escritas por Didion, encontradas logo após sua morte. São transcrições de sessões com seu psiquiatra Roger MacKinnon, feitas ao longo de três anos e endereçadas ao seu marido, o escritor John Dunne.

A autora começou a se consultar por sugestão do doutor Kass, o terapeuta de Quintana Roo, sua filha que lidava com a depressão e o alcoolismo. Roo havia dito ao seu médico que suspeitava que a mãe também estivesse depressiva.

Kass acreditava que a doença de Quintana tivesse como causa a relação de codependência com a mãe. Também considerava benéfico para a família que mãe e filha se tratassem, além de valorizar a troca de informações com MacKinnon sobre suas respectivas pacientes.

O livro é repleto de relatos interessantes, como quando Didion conta a seu psiquiatra sobre a noite em que assistiu com sua filha, na época com sete anos, ao filme “A Noite dos Mortos-Vivos”. MacKinnon consegue extrair desse episódio, a princípio banal, camadas de complexidade na relação das duas.

Ou quando Didion, em momento de autoconsciência cortante, reflete: “Percebi que talvez parte da situação em que me encontro agora resulte do fato de que nunca me preparei —de alguma forma, nunca consegui me preparar— para a idade que tenho e para a situação em que me encontro agora. E comecei a me perguntar se, de alguma forma, não teria sido necessário —para preservar a imagem de mim mesma como alguém jovem e poderosa— manter Quintana como um bebê, dependente de mim”.

Quando “Para John” foi publicado, houve quem defendesse a exposição póstuma da autora e argumentasse que essa seria uma forma interessante de compreender o seu processo criativo. Apontavam, com alguma razão, que sua biografia sempre havia informado a sua escrita, e vice-versa.

Também houve quem afirmasse que a identidade de Didion era o seu estilo, uma depuração da mistura de concisão e musicalidade de Hemingway, de quem era fã. Para John, de acordo com eles, não era uma obra acabada, mas a sombra de um esboço.

Martin Amis uma vez definiu a escrita da autora como “(…) composta de ênfases, repetições e reiterações. Um estilo de quem aprecia olhar as mesmas coisas sob ângulos diferentes e gosta de começar e de terminar frases sucessivas de modo semelhante”. É um estilo enumerativo, com modulação e cadência próprias.

Ela escrevia as cenas de seus romances como quem criava o roteiro de um filme. Nunca teve muita paciência com descrições. O que movia a ação eram os diálogos e as elipses entre esses diálogos. Para John pode ser lido como a elaboração dessa técnica.

O que está registrado é, em primeiro lugar, a lembrança do que disse ao terapeuta. Depois, o recorte das confidências dirigidas ao marido. Importa tanto o que foi revelado quanto o porquê da revelação. Além, é claro, da maneira escolhida para narrar.

Em ensaio antigo sobre Hemingway, Didion condenou a publicação póstuma de material inacabado do autor. Editar um escritor morto era uma atividade repleta de seus próprios dilemas éticos, refletia.

Didion achava que o estilo literário de alguém tinha menos a ver com ornamento e muito mais com precisão. Você até pode ler Para John e considerá-lo uma obra “crua” e “verdadeira”, mas talvez seja mais adequado argumentar o oposto.

Quer dizer, a verdadeira Joan Didion é a perfeccionista que submetia cada sentença a revisões exaustivas. A obcecada com a precisão de sua escrita e uma esteta que redefiniu a literatura e o jornalismo nos Estados Unidos. No fim, a sua verdade jamais foi “crua”, mas sempre fruto de elaboração, rigor e método.

PARA JOHN

– Avaliação Muito bom

– Preço R$ 89,90 (224 págs.)

– Autoria Joan Didion

– Editora HarperCollins Brasil

– Tradução Marina Vargas