SÃO PAULO, SP (UOL/FOLHAPRESS) – A cidade de Santa Bárbara d’Oeste, no interior de São Paulo, tem em seu passado algumas das cicatrizes da história americana: a cidade foi fundada por soldados confederados, que escapavam da reconstrução do sul após a Guerra de Secessão, nos anos 1860.
No início do século 19, Santa Bárbara ainda era mata virgem. Ao longo das seis primeiras décadas, ela foi gradualmente desbravada para cultivo. Surgiram assim as primeiras capelas e povoado, que inicialmente pertenciam à Piracicaba (SP).
Em 1867 começaram a chegar os primeiros soldados americanos a Santa Bárbara, que se tornou “independente” como cidade dois anos depois. Segundo a própria Prefeitura de Santa Bárbara, os confederados sobreviventes da Guerra de Secessão (1861-1865) trouxeram técnicas agrícolas que contribuíram significativamente para o desenvolvimento da região, que ainda incluiu o desenvolvimento da cidade de Americana (SP).
A Guerra de Secessão foi um conflito que quase rachou os EUA em torno da questão escravocrata. O sul do país, que queria preservar a escravidão, defendia o seu avanço para os territórios do oeste, enquanto os estados do norte (chamados de a União) queria impedir que os novos territórios recém-anexados se tornassem escravocratas também e colocava o sistema em risco a longo prazo.
Com a guerra, o sul separou-se do norte e formou uma nova república: a Confederação (ou Estados Confederados da América). No entanto, diante de sua derrota nos campos de batalha, a Confederação não durou.
Após o conflito, os sulistas escravocratas tiveram que se reincorporar aos EUA ou deixá-lo. Este período, a reconstrução, foi especialmente difícil economicamente para a região com a libertação dos escravizados no pós-guerra. Assim, inicialmente, cerca de 2.700 americanos vieram parar no Brasil, com pelo menos 800 deles na província de São Paulo, segundo artigo da pesquisadora Letícia Aguiar, mestre em ciências econômicas pela Unicamp.
O QUE OS AMERICANOS VIERAM FAZER NO BRASIL?
A imigração dos confederados para o interior de São Paulo foi estimulada pelo Império Brasileiro, que queria alavancar a produção de algodão para exportar às indústrias inglesas. Esta era a mesma produção que eles já realizavam no sul dos EUA, mas não viam mais condições após o conflito. Na época, o Brasil ainda escravocrata era boa ideia: documentos históricos sugerem que Dom Pedro 2º ofereceu traslado gratuito do porto, isenção de serviço militar, entre outros “mimos” pela vinda deles.
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Confederados “reconstruíram” seu modo de vida no Brasil, incluindo a compra de pessoas escravizadas. Segundo o Recenseamento Geral do Brasil de 1872, Santa Bárbara possuía 2.587 pessoas naquela época, e 213 delas eram escravizados.
O grupamento de Santa Bárbara se tornou o mais bem-sucedido, com americanos cultivando algodão, cana e melancia e se integrando à política local. Entre 1896 e 1898, o confederado Wilber Fish McKnight foi o primeiro americano a se tornar político como vereador na Câmara Municipal da cidade, ainda segundo o levantamento da pesquisadora Letícia Aguiar.
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O êxito econômico tornou a comunidade vibrante e os descendentes dos confederados fizeram questão de manter vivas suas raízes. Era o caso do pai da cantora Rita Lee, Charles Fenley Jones. De família de imigrantes americanos que se estabeleceram em Santa Bárbara, ele deu à futura rainha do rock brasileiro um nome em homenagem ao general confederado Robert E. Lee. A história foi contada pela própria Rita em seu livro “Rita Lee: Uma Autobiografia”.
ACUSAÇÕES DE RACISMO
Desde os anos 1980, Santa Bárbara organizava no Cemitério dos Americanos um festival chamado “Festa Confederada”, que celebrava suas raízes e a colônia local. Moradores se vestiam como os soldados da Guerra de Secessão, hasteavam suas bandeiras da Confederação, comiam pratos americanos e cantavam e dançavam ao estilo Antebellum do sul.
Implicações do que estes símbolos significam para o povo americano incomodavam alguns descendentes e principalmente visitantes. A bandeira confederada era ostentada pela Ku Klux Klan, por exemplo. A organização supremacista branca de extrema-direita foi fundada por ex-membros do exército confederado e se disseminou ao longo do século 20 com linchamentos e outros crimes de ódio contra negros, estrangeiros, judeus, católicos, comunistas, liberais etc.
Organizadores e membros da comunidade tentaram defender e manter o evento. Em entrevista ao jornal The New York Times, o engenheiro brasileiro Cícero Carr afirmou, em 2016, que os descendentes de confederados de Santa Bárbara não são racistas. “Estamos apenas reverenciando nossos ancestrais que tiveram o bom senso de se fixar no Brasil”, justificou.
Grupos antirracistas e de defesa dos direitos das populações negras passaram a protestar contra a Festa Confederada. A festa passou a sofrer ainda mais pressões para remover os símbolos da Confederação após o assassinato de George Floyd, em 2020, e o movimento Black Lives Matter, contra a brutalidade policial que tem como alvo os negros.
Em 2021, foi proposto um projeto que proíbe o uso de símbolos segregacionistas e racistas pela cidade. A ideia não era impedir a festa, mas remover a ostentação pública da bandeira e outros elementos que remetem à escravidão e a crimes de ódio de organizações como a Ku Klux Klan contra as populações negras.
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Eduardo Bolsonaro saiu em defesa da Festa Confederada após visitar Santa Bárbara em 2022. Parte da Fraternidade Descendência Americana (que organizava a festa) recebeu o deputado à época, reportaram veículos locais. O alinhamento da instituição com o então governo gerou críticas de que o evento e a memória da comunidade americana não fossem o xis da questão, mas sim alianças com políticos que mantêm alianças com o Trumpismo.
Bandeira confederada acabou oficialmente proibida em 2022, e a festa foi cancelada em 2023, sem maiores explicações. Em 2024, ela foi substituída por um piquenique aberto aos descendentes e amigos da Fraternidade Descendência Americana.