SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – No outono alemão de 2015, trens vindos da Hungria e Itália chegavam a cada hora na estação central de Munique, trazendo pessoas exaustas que haviam cruzado o Mediterrâneo e caminhado milhares de quilômetros a pé. Muitas vinham com crianças, outras descalças ou feridas. As rotas dos refugiados, pelo mar ou pelos Bálcãs, levavam finalmente ao sul da Alemanha.
Naquela época, acontecia algo que hoje parece improvável: moradores locais davam água, comida e brinquedos para as crianças; a polícia se mostrava solidária; e, por vezes, os migrantes eram recebidos com aplausos.
Essas cenas se tornaram símbolos do debate sobre a política migratória alemã nos anos seguintes. O termo “Bahnhofsapplaudierer” os que aplaudiam os trens virou um insulto usado pela direita crítica à migração, assim como “Gutmenschen” (pessoas boas, mas pejorativo algo como “santinhos”).
Nos primeiros dias, a Alemanha se comoveu com a angústia de muitas pessoas que finalmente pareciam estar em segurança num dos países mais ricos da Europa. Imagens na TV mostravam suas jornadas sofridas; só em abril de 2015, 1.400 pessoas haviam morrido no Mediterrâneo em uma única semana.
Talvez a emoção alemã fosse também por um país que buscava se redimir da história. Uma nação marcada pelo nazismo e ataques a refugiados nos anos 1990 agora demonstrava abertura e humanidade, encabeçada pela primeira-ministra, Angela Merkel, e suas palavras: “Vamos conseguir”.
Hoje, 68% dos alemães defendem que o país receba menos refugiados, segundo pesquisa de 2025 da emissora pública ARD.
Após o pico da crise, com 150 mil chegadas mensais, a solidariedade inicial deu lugar a disputas internas e a uma onda crescente de xenofobia e islamofobia. Movimentos como o Pegida, sigla para Europeus Patriotas contra a Islamização do Ocidente, passaram a se manifestar semanalmente nas cidades alemãs. O até então pequeno partido AfD (Alternativa para a Alemanha) encontrou na migração seu tema central, tornando-se a segunda maior força política do país.
Uma virada decisiva ocorreu no final de 2015, em outra estação de trem importante. Em Colônia, o Ano-Novo foi comemorado na praça em frente à estação central e à catedral, com fogos caseiros e bebidas alcoólicas, como é comum nas cidades alemãs. Naquele ano, ocorreram centenas de abusos sexuais contra mulheres: 511 denúncias e 28 estupros ou tentativas de estupro. Os suspeitos eram, em sua maioria, homens de Marrocos e da Argélia, recém-chegados ao país. O episódio aumentou as dúvidas sobre a capacidade da Alemanha de lidar com a crise e inflamou o debate público.
A mudança de humor também resultou em uma política mais rígida, na Alemanha e na Europa. “O controle das fronteiras externas da Europa ficou muito mais rigoroso nos últimos dez anos a política de isolamento e de dissuasão se intensificou”, diz a socióloga Judith Kohlenberger, da Universidade de Economia e Negócios de Viena, à Folha.
Até hoje, crimes cometidos por migrantes alimentam questionamentos sobre a política migratória. Estudos do pesquisador de mídia Thomas Hestermann mostram que a imprensa exagera na cobertura de crimes envolvendo estrangeiros. “Quando as pessoas não conhecem refugiados pessoalmente, dependem da mídia e de histórias de terceiros”, afirma Kohlenberger. “As redes sociais têm um papel central nisso: os algoritmos amplificam conteúdos que geram raiva e escândalo, em vez de informar com equilíbrio.”
Assim, diz a socióloga, a migração se torna um tema explosivo, “enquanto a grande maioria dos refugiados, que trabalha e consegue a cidadania, continua invisível”.