SÃO PAULO, SP, E BERLIM, ALEMANHA (FOLHAPRESS) – “Ao me levantar na sexta-feira, 4 de setembro de 2015, não tinha ideia de que aquele seria um dia que entraria para a história da Europa.” Horas depois, já na virada para o dia 5, Angela Merkel abria as fronteiras da Alemanha a centenas de milhares de refugiados, espremidos até ali por cercas, arame farpado, forças policiais e intolerância.

Naquela noite, a decisão chegou aos imigrantes por postagens no Facebook publicadas simultaneamente pelos governos alemão e austríaco. A medida havia sido anunciada dias antes pela então primeira-ministra durante a entrevista coletiva de verão, uma praxe na Alemanha. Era 31 de agosto, e Merkel, ao prestar contas de seu governo, não fugiu do assunto difícil do momento, a crise imigratória.

Em maio daquele ano, a Alemanha se preparava para receber 400 mil pedidos de asilo no ano; em agosto, a estimativa dobraria. A Primavera Árabe de 2010 havia se transformado em guerra na Líbia e na Síria. Os jornais lidavam com imagens chocantes de barcos adernados e afogamentos de crianças no Mediterrâneo. Imigrantes congestionavam centros de triagem em países como Itália, Grécia e Turquia. Os Bálcãs haviam se tornado território de trânsito.

Em sua autobiografia, “Freiheit” (“Liberdade”), Merkel conta que não sabia como abordar a questão, que julgava imperativa, no encontro com os jornalistas. Em uma conversa com sua assessora Beate Baumann, lamentou que mal tinha acabado de sair da crise anterior, o calote da Grécia, e a seguinte já batia à sua porta. “Mas tudo bem. De algum jeito faremos isso. Afinal, conseguimos antes”, disse a premiê, segundo seu próprio relato.

Baumann respondeu: “É verdade. E na entrevista você pode dizer exatamente isso, como disse aqui para mim”. Foi assim que nasceu a mais famosa frase da era Merkel, “Wir schaffen das” (“Vamos conseguir”), que para o bem ou para o mal, dez anos mais tarde, sintetiza o momento da Alemanha diante de um outro tipo de crise relacionada à imigração.

Não era uma mensagem de esperança, como o “Yes, we can” (“Sim, podemos”) da campanha presidencial de Barack Obama. Merkel escreve que suas palavras não resolveriam o problema, mas dariam confiança para quem, como ela, considerava a recepção dos refugiados, além da questão humanitária, um dever previsto na Constituição alem㠗ela chega a reproduzir no livro um trecho do artigo 1° da Carta.

Setores conservadores, incluindo o atual primeiro-ministro, Friedrich Merz, consideram a antes festejada decisão de abrir as fronteiras um objetivo não alcançado, quando não um fracasso. A nova crise imigratória abastece o discurso político, a ponto de a própria Merkel ter vindo a público nesta semana para dizer que seu ato contribuiu para a ascensão da extrema direita na Alemanha. “Isso certamente fortaleceu a AfD. Mas seria motivo para eu não tomar uma decisão que considero importante, correta, sensata e humana?”

Pesquisas de opinião contestam a ex-mandatária. O crescimento da AfD, Alternativa para Alemanha, legenda populista que já tem a segunda maior bancada do Parlamento, está mais ligado a questões econômicas e à decepção com os atuais ocupantes do governo. “Em 2017, dois anos após a abertura das fronteiras, imigração era uma das grandes questões da campanha eleitoral, mas não era uma questão para os eleitores”, afirma Peter Matuschek, diretor do Instituto Forsa, que há décadas ausculta a opinião pública alemã.

Segundo especialistas, o cenário não é diferente agora. “Infelizmente, partidos de centro adotaram essa narrativa de que a imigração é um dos principais problemas na Alemanha. E, mais do que linguagem semelhante, adotam as atitudes. Há um desrespeito crescente ao Estado de Direito e à dignidade humana”, afirma Wiebke Judith, porta-voz jurídica da Pro Asyl, entidade que apoia solicitantes de asilo na Alemanha.

Assim como a gestão Merkel atropelou a legislação europeia para receber refugiados em 2015, que pelas regras deveriam pedir asilo no primeiro país da UE que aportassem, o gabinete de Merz agora afasta as diretrizes do bloco para intensificar o controle de fronteiras e inibir a concessão de asilos.

Se a Alemanha absorveu mais de um milhão de estrangeiros em 2015 e 2016, neste ano apenas 61 mil refugiados foram contemplados até junho; em igual período do ano passado, haviam sido 195 mil. Pela primeira vez o país mais populoso da UE não lidera as estatísticas de imigração. Espanha (76 mil), França (75 mil) e Itália (63 mil) estão à frente.

Da decisão de Merkel até 2024, a Alemanha absorveu 6,5 milhões de imigrantes, a maior parte de sírios e, nesta década, ucranianos. “A integração nos últimos dez anos não foi perfeita. A chegada dos refugiados também expôs problemas que já existiam antes: no mercado imobiliário, no sistema de assistência social e nas escolas”, afirma a socióloga Judith Kohlenberger, da Universidade de Economia e Negócios de Viena.

Do grupo de refugiados recepcionado em 2015 e 2016, a maioria veio da Síria e do Afeganistão, foco dos grandes conflitos da época. Dois terços do contingente estão empregados dez anos depois, e 180 mil se tornaram cidadãos alemães. A dependência a programas de apoio vem caindo. A adaptação, segundo técnicos do governo, foi mais rápida do que a de levas anteriores de refugiados, como os da guerra na ex-Iugoslávia, nos anos 1990, que demoraram mais para ingressar no mercado de trabalho.

A integração é melhor nas regiões que receberam imigrantes. A rejeição é maior nas cidades em que quase não há estrangeiros, muitas delas na esfera da AfD. A criminalidade relacionada a refugiados é um debate inconcluso, que volta com frequência às manchetes dos jornais. O gesto humanitário de Merkel, festejado pelo mundo, perdeu boa parte do brilho logo na virada de 2015 para 2016, quando uma onda de agressões sexuais contra mulheres ocorreu em diversas partes do país, principalmente em Colônia.

Doze meses mais tarde, em dezembro de 2016, um tunisiano, que tivera o pedido de asilo negado, roubou um caminhão e invadiu um mercado de Natal no centro de Berlim, matando 13 e ferindo mais de 40 pessoas. O atentado foi reivindicado pelo Estado Islâmico.

De novo, os números desmentem quem vê relação automática entre violência e rejeição a estrangeiros. Na última campanha eleitoral, pontuada por ao menos quatro ataques protagonizados por imigrantes e solicitantes de asilo, nenhum deles foi capaz de alterar as pesquisas. Pelo contrário, quem tirou dividendos foi o Partido A Esquerda, que encampou manifestações contra uma ofensiva anti-imigratória capitaneada por Merz. De forma controversa e inédita, o então futuro primeiro-ministro aceitou o apoio da AfD.

Em um país com baixa taxa de natalidade e crescente envelhecimento da população, a imigração é um tema tão controverso quanto ambivalente. “Acabamos de fazer uma pesquisa sobre os dez anos da crise imigratória. O que ficou para a maioria das pessoas na Alemanha é a narrativa de problemas avassaladores provocados pelo fluxo. Perguntamos então se a migração era necessária. Quase 70% responderam que sim”, afirma Matuschek, do Forsa.