SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ao caminhar pelo pavilhão da 36ª Bienal de São Paulo, a sensação inicial é de novidade, como se muitos dos trabalhos estivessem sendo vistos pela primeira vez. A surpresa, no entanto, é constatar que boa parte desses artistas já acumula décadas de carreira fora do Brasil -e só agora chega ao público local.

É o caso de Frank Bowling, 91, e Théodore Diouf, 76. A lista inclui ainda Leiko Ikemura, Gozo Yoshimasu, Madame Zo, Huguette Caland e Ernest Mancoba, todos ausentes até agora do circuito brasileiro, evidenciando tanto a proposta de revisão histórica da exposição, a principal mostra de artes do Brasil, quanto o atraso das instituições locais em incorporar esses trajetos.

A curadoria, comandada pelo camaronês Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, ao lado de Alya Sebti, Anna Roberta Goetz e Thiago de Paula Souza, organiza-se em torno da ideia de repensar a humanidade como prática e de reposicionar vozes à margem das narrativas hegemônicas. Mais do que lançar jovens promessas, o evento questiona o próprio funcionamento das grandes mostras entre vitrines de tendências e espaços de revisão crítica da história da arte.

Esse tensionamento aparece na diversidade reunida. Do lirismo corporal de Huguette Caland aos trabalhos têxteis de Madame Zo, das abstrações de Bowling à poesia performática de Yoshimasu, a bienal propõe um panorama em que a experiência acumulada desafia a associação entre contemporaneidade e juventude.

Bowling e Diouf talvez sejam os exemplos mais claros desse gesto. O primeiro construiu uma pintura abstrata celebrada internacionalmente desde os anos 1970. O segundo, um trabalho de cores intensas e simbologia entre sonho e cotidiano africano. Ambos, porém, permaneciam invisíveis no circuito latino-americano.

A mesma lógica se aplica à libanesa Huguette Caland, morta há seis anos, conhecida no Ocidente por pinturas e roupas-escultura que exploram corpo e sensualidade, e ao sul-africano Ernest Mancoba, morto há três anos, pioneiro negro do modernismo europeu, cuja produção passou décadas à margem da narrativa oficial.

Já Madame Zo, de Madagascar, que morreu em 2020, apresenta painéis têxteis feitos de tecido, cobre e papel, embaralhando fronteiras entre arte e artesanato. A nipo-suíça Leiko Ikemura, 74, cria seres híbridos entre mitos orientais e imaginários ocidentais. Gozo Yoshimasu, 86, amplia o escopo ao fundir oralidade, gesto e escrita em sua poesia experimental.

O gesto de resgate também inclui artistas brasileiros com produção longeva e que aparecem pela primeira vez em uma Bienal. A paraibana Marlene Almeida, 83, apresenta esculturas que dialogam com décadas de pesquisa em solos e pigmentos. O baiano Alberto Pitta, 64, insere no contexto internacional a força simbólica de suas bandeiras ligadas aos blocos afros de Salvador.

Outros nomes históricos reforçam essa revisão, como Maria Auxiliadora, morta em 1974, que retratou a religiosidade popular com cores vibrantes, e Heitor dos Prazeres, morto em 1966, sambista e pintor que registrou a vida afro-brasileira no Rio de Janeiro.

A presença desses artistas expõe uma lacuna histórica: a dificuldade do Brasil em dialogar de maneira consistente com produções da África e da Ásia. “Não me surpreende que essa dificuldade de troca aconteça. Enquanto instituições europeias e americanas há anos exibem nomes como Bowling ou Mancoba, aqui eles chegam como estreantes tardios”, afirma o crítico de arte Gabriel San Martin.

Outros museus brasileiros têm tentado enfrentar essa defasagem -como o Masp, o Museu de Arte de São Paulo, com seus ciclos sobre histórias feministas e afro-atlânticas; o IMS, Instituto Moreira Salles, ao revisitar legados fotográficos invisibilizados; ou o Sesc, com mostras de arte africana contemporânea. Mas a Bienal de São Paulo, pela escala e centralidade, dá outra dimensão a esse movimento.

Nesse contexto, a apresentação de artistas de 90 anos como novos evidencia as lacunas históricas do sistema de legitimação, que por muito tempo privilegiou trajetórias ligadas a eixos hegemônicos. Ao reposicionar esses nomes, a bienal contribui para ampliar os parâmetros do que se entende por arte contemporânea no Brasil.