SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – De geração em geração, o povo waurá preserva sua cultura milenar de produção de cerâmicas no Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso. Essa prática ancestral, porém, sofre agora com as consequências da crise climática.

As secas mais frequentes dos rios resultaram na escassez do cauxi -uma esponja de água doce usada pelos indígenas como matéria-prima na produção das cerâmicas. O problema pode afetar o modo de vida tradicional e a renda da comunidade.

Yakuwipu Waurá, 37, ceramista e auxiliar de desenvolvimento infantil, relata que a ausência do cauxi, usado para dar liga na massa de argila, foi notada durante o trabalho de coleta anual.

“De 2023 para cá, a gente começou a notar esse problema da mudança climática que está afetando a nossa região. Antigamente, quando o rio enchia, a gente pegava o cauxi. Aí ficava cheio até uns três ou quatro meses para baixar de novo. Só que ultimamente isso não está acontecendo. A cheia, agora, dura uns 15 dias. Não dá tempo do cauxi se reproduzir”, diz à Folha de S.Paulo.

Após ser coletado, o cauxi é queimado em uma fogueira e as suas cinzas são usadas como um aglomerante, que une os outros materiais para formar o corpo sólido e coeso da peça. E, então, cada produção ganha os grafismos dos waurás, o único povo do Xingu que produz cerâmicas.

“A cerâmica é importante porque conecta o meu povo com o nosso passado. Durante a produção das panelas, nos é contada a nossa história. Não fazemos à toa. As peças são inspiradas nos nossos ancestrais, no conhecimento deles”, explica.

As panelas e as louças, feitas pelas mãos das mulheres, carregam ancestralidade e crença. Elas são usadas em casa e também negociadas ou vendidas para outros povos e pessoas não indígenas.

“Nós vivemos com o que a natureza nos oferece”, acrescenta Yakuwipu. “Nós não prejudicamos a natureza, não produzimos lixo. Quando as peças quebram, nós reaproveitamos a matéria-prima. Nós usamos elas como utensílios e trocamos com outros povos, que preparam beiju e caldo de mandioca. Também vendemos, é uma renda familiar.”

Para debater os impactos das mudanças climáticas na cultura waurá, mulheres ceramistas viajaram do Xingu até São Paulo, onde participam de oficinais de cerâmica nesta quarta (3), no Museu das Culturas Indígenas, e na quinta (4) e na sexta (5), no Sesc Consolação. Já no sábado (6), elas levam roda de conversa e oficina de grafismo para o Museu A Casa do Objeto Brasileiro.

MEMÓRIA WAURÁ

Os desafios de manter a tradição vão além da escassez do cauxi. O Xingu é cercado por fazendas e sofre com a pressão do agronegócio. O desmatamento e as queimadas na região levaram ao desaparecimento do bambu nativo, antes usado na produção dos instrumentos tradicionais de sopro, similares a flautas, chamados de watana.

Tukupe Waurá, liderança na aldeia Piyulewene, conta que os xinguanos passaram a produzir alguns instrumentos com canos de PVC, a partir de 2005. Essas flautas foram batizadas de taquara e são tocadas apenas em celebrações internas.

Ele destaca que no ritual Kuarup (Kaumãi, no idioma waurá), a maior manifestação cultural do Xingu, apenas podem ser tocadas as watanas, feitas exclusivamente de matérias-primas da natureza. Em alguns casos, esses materiais são obtidos fora do território.

“Nós estamos lutando para manter essa cultura, mas agora com essa crise da mudança climática o bambu está escasso, não está conseguindo nascer como antes. Então, adaptamos com o PVC para fazer o taquara”, detalhou.

No ano passado, os waurás celebraram o resgate de uma memória que quase foi perdida. A aldeia Ulupuwene recebeu uma réplica da gruta sagrada de Kamukuwaká, considerada o berço da história dos povos do Alto Xingu.

A gruta original, hoje localizada entre duas fazendas de soja, guardava petróglifos milenares, com registros da crença do surgimento do povo e os conhecimentos de como se relacionar com o mundo. Em 2018, os indígenas notaram que as gravuras esculpidas nas rochas foram apagadas em um ato de vandalismo. Os responsáveis ainda não foram descobertos.

Quando o Parque do Xingu foi demarcado, em 1961, a Kamukuwaká ficou do lado de fora. Na época, os indígenas não entendiam como funcionavam os limites territoriais.

Com a expansão do agronegócio em Mato Grosso ao longo dos anos, o local se tornou alvo de uma disputa com fazendeiros. A área da gruta passou a ser reivindicada pelos waurás, o que agravou o conflito.

Os waurás, então, firmaram parceria com o centro de arte e pesquisa People’s Palace Projects (PPP), da Inglaterra, e a ONG Factum Foundation, da Espanha. Juntos, conseguiram produzir uma réplica que mede oito metros de largura por quatro de comprimento. A gruta, feita com tecnologia de ponta, reproduz os petróglifos e os relevos da original.

*O projeto Excluídos do Clima é uma parceria com a Fundação Ford.