SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A manifestação do procurador-geral da República, Paulo Gonet, nesta terça-feira (2) de que houve na cronologia do golpe vários atos com ameaça ou violência -mesmo antes do 8 de Janeiro- sinaliza a postura adotada pelo PGR para rebater a tese da defesa de réus de que a tentativa de golpe em julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal) não teria os elementos necessários para se enquadrar nos tipos penais previstos em lei.

Parte da defesa dos réus usa essa premissa, a exemplo dos advogados do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Eles argumentam que a legislação brasileira vê a tentativa -descrita no tipo penal- como atrelada ao início da execução, que dependeria do emprego de violência ou grave ameaça. Dizem ainda que essa violência ou grave ameaça tem que ser contra pessoa.

Especialistas ouvidos pela Folha de S.Paulo afirmam que, embora a violência e grave ameaça estejam, tradicionalmente na legislação brasileira, voltadas a uma pessoa concreta, os tipos penais sobre os crimes contra a democracia podem estar tratando de uma interpretação mais alargada sobre o objeto de violência, estendendo-o a coisas ou instituições democráticas. A questão, entretanto, ainda precisa ser elucidada pelo Supremo.

A exigência de violência ou grave ameaça está prevista nos artigos do Código Penal que tratam da abolição violenta do Estado democrático de Direito e do golpe de Estado, dois dos crimes pelos quais Bolsonaro e outros réus são acusados. Se condenado por liderar a trama golpista, o ex-presidente pode pegar mais de 40 anos de prisão e aumentar a sua inelegibilidade, que atualmente vai até 2030.

Na manifestação desta terça, Gonet falou em uma série de atos que já trariam em si violência ou ameaça, para além do 8 de Janeiro ou o plano para matar autoridades. Com a fala, ele sinaliza que a perspectiva adotada pela acusação extrapola o foco da violência em pessoas concretas, se coadunando com uma perspectiva mais ampliada que pensa na ofensa a instituições e bens jurídicos.

O PGR afirmou na sessão que a ameaça de violência se revelou em etapas nas quais se desenvolveram a sequência de práticas voltadas ao assolamento das instituições democráticas.

Ele disse que a utilização ilegal da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) e das forças da PRF (Polícia Rodoviária Federal) para tentar impedir eleitores do presidente Lula (PT) de votar nas eleições de 2022 já compunham “momentos do golpe postos em andamento em que a violência está presente”.

“O uso do monopólio da força pelo Estado para fins de inibição dos direitos fundamentais dos cidadãos configura ato violento por si”, afirmou Gonet.

Do mesmo modo, citou como no “domínio do termo violência” a convocação de militares para tratar de minutas golpistas, bem como a “incitação a movimentos de repúdio ao resultado eleitoral” e o apoio aos acampamentos “onde se clamava abertamente por ‘intervenção militar'”.

“Paralisação forçada de caminhoneiros, flagrantes de atentados a bomba, convulsão nas ruas de Brasília em seguida à perda das eleições pelo ex-presidente da República são atos de violência que se vinculam ao atentado posto em curso contra as instituições democráticas”, afirmou Gonet.

Já a defesa de réus como o ex-presidente Bolsonaro tem apostado na interpretação de que a violência ou grave ameaça previstas em lei precisam ser contra pessoa concreta e determinada, a exemplo do que comentaram os advogados do político em sua alegação final.

Eles entendem que atos como o alegado plano para matar autoridades e o próprio 8 de Janeiro são os que mais se aproximariam do quadro descrito nos tipos penais. Por isso, tentam afastá-los do ex-presidente, dizendo não haver provas que liguem Bolsonaro aos atos.

Segundo Raquel Scalcon, professora da FGV Direito SP, a referência na legislação brasileira à violência é, tradicionalmente, voltada à pessoa, “o que não quer dizer que essa é a resposta correta nesse caso [dos crimes contra a democracia]”.

Ela afirma que a questão é uma das que precisam ser enfrentadas pelo Supremo sobre os tipos penais, que ainda trazem dúvidas. A previsão dos especialistas é que o atual julgamento ajude a consolidar a jurisprudência dos crimes, inseridos na legislação em 2021 e analisados na corte apenas no contexto das ações penais envolvendo o 8 de Janeiro.

Newsletter FolhaJus A newsletter sobre o mundo jurídico exclusiva para assinantes da Folha *** Para Ricardo Yamin, doutor em direito pela PUC-SP, a violência descrita nos tipos penais não precisa ser necessariamente voltada contra alguém em específico e pode fazer referência às instituições e aos poderes democraticamente constituídos.

“Não preciso violentar o presidente eleito, não preciso violentar o ministro do Supremo. Eu posso ter atitudes violentas, agressivas contra instituições democráticas. A decretação de uma GLO [Garantia da Lei e da Ordem] e a prisão de opositores [citada no plano golpista] são exemplos de atentado violento.”

Para Diego Nunes, professor de direito da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), a discussão acerca do requisito de verificação de violência ou grave ameaça é fundamental no julgamento.

“Classicamente, a ameaça é de um mal grave que resulte ao menos na possibilidade iminente de um dano, geralmente físico. Há quem aceite a possibilidade de dano psicológico ou patrimonial, ou limitação da liberdade pessoal”, afirma Nunes.

“O PGR parece se filiar a essa corrente mais ampla. Porém, na denúncia, ele fez questão de associar Bolsonaro e os demais réus do núcleo crucial ao 8 de Janeiro por meio da ideia de crime multitudinário. Isso significa que ele quis garantir que a acusação se mantenha caso a turma do STF aplique um conceito mais restrito, aproveitando os atos de violência ali cometidos e conectando-os a quem não estava ali presente, mas teria instigado o seu cometimento”, diz.

Segundo Luisa Moraes Abreu Ferreira, professora da FGV Direito SP, a discussão sobre o alvo da violência e ameaça descritas nos tipos penais é um ponto central do julgamento. Ela diz que o tema ainda não foi definido pelo STF.

“No julgamento dos executores do 8 de Janeiro, obviamente que havia violência. No caso do ex-presidente Bolsonaro ele não está tão diretamente vinculado a atos violentos e de grave ameaça”, interpreta ela.

“Para dizer que ele participou de tudo isso e que tudo isso foi uma tentativa de golpe de Estado nos termos do 359, que exige violência ou grave ameaça, o Supremo vai ter que definir o que considera violência ou grave ameaça para fins desse artigo.”