VENEZA, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Após sete anos sem lançar filmes, a americana Kathryn Bigelow ressurge com um longa que dividiu opiniões na competição do Festival de Veneza. Seu “A House of Dynamite”, exibido nesta terça (2), é uma fantasia sobre armamentismo nuclear, em que os Estados Unidos descobrem que um míssil de altíssimo poder de destruição foi lançado rumo a seu território. Sem crer direito no que acontece e não ter ideia de onde veio o ataque, as autoridades não têm muito a fazer que não seja esperar a catástrofe.

Sempre lembrada como primeira mulher a ganhar um Oscar de melhor direção, em 2010, por “Guerra ao Terror”, Bigelow volta à temática geopolítica em seu novo trabalho, em que faz uma clara denúncia do quanto o mundo atual está sujeito à destruição diante de lideranças de pavio curto e muita soberba no trato com países inimigos.

Na trama, autoridades americanas detectam que o míssil deve atingir Chicago em poucos minutos. Para evitar a morte de quase 20 milhões de pessoas que moram nos entornos da cidade, a defesa do país tenta derrubá-lo, mas falha. O foco do longa fica sobre o desespero da alta cúpula da Casa Branca e do Pentágono, que sabe o que está prestes a acontecer, evidenciando sua total vulnerabilidade diante da tragédia anunciada.

Bigelow demonstra que não perdeu o vigor para uma narrativa que investe na tensão emocional, ainda que por vezes as falas sejam por demais complicadas -há a todo tempo desnorteantes menções a códigos e termos técnicos do mundo da segurança nacional de um país. Mas a cineasta contorna isso com habilidade, em uma obra que consegue abordar questões sérias envolvendo o espectador, com um crescendo de suspense que se assemelha ao dos melhores filmes-catástrofe dos anos 1970, embora com um subtexto temático bem mais elaborado.

Mas a cineasta, embora teça uma trama em que expõe as fragilidades da segurança do seu país, não se desvencilha de um ponto de vista por demais americanófilo. O que ela apresenta em termos de crítica aos Estados Unidos é insuficiente, diante da carga que o país possui no cenário bélico mundial.

Em uma chave mais intimista, o francês François Ozon mostrou no Lido “L’Étranger”, sua adaptação de “O Estrangeiro”, de Albert Camus, que já havia virado filme em 1967 pelo italiano Luchino Visconti. Conta a história de Meursault, um francês radicado na Argélia, ainda colônia da França, que não consegue ter muito entusiasmo por nada em sua vida.

Quando ele vai a uma praia com amigos, vê-se em uma situação inusitada e acaba matando um argelino a tiros. Vai a julgamento por isso, mas como é francês, tem grandes chances de ser inocentado. Ele, no entanto, se recusa a colaborar com seu advogado, correndo o risco de ser condenado à morte.

Meursault foi criado por Camus como um homem em crise diante de um mundo que ele julga absurdo em essência. E que simplesmente não quer se justificar diante dos outros. Não entendia, é bem verdade, de onde exatamente vinham suas motivações, mas ele próprio não se preocupava tanto em elaborar alguma tese sobre isso -ou, em última análise, não julgava que devia compartilhar essa sua verdade com as demais pessoas. Fosse lá o que o movesse, isso dizia respeito apenas a ele próprio.

O Meursault do livro é um homem de assombrosa apatia, quando não passividade, diante de praticamente tudo o que o cerca. O do longa, vivido com segurança por Benjamin Voisin, segue a mesma diretriz, mas Ozon extrapola um pouco em sua indiferença, e por vezes ele parece tão alienado do que está ao seu redor que deixa de ser um homem em crise -assemelha-se mais a um robô.

As imagens de uma Argélia colorida e abrasiva são filtradas por um preto e branco de uma elegância talvez excessiva, que não transmite a mesma sensação de calor e delírio febril da versão de Visconti. Mas a opção faz certo sentido, se pensarmos que ilustra as limitações de como Meursault observa o que o circunda.

O filme de Ozon é uma ótima versão do livro, mas o cineasta torna as cenas do tribunal por demais didáticas e literais -há uma perda da sensação de caos e da comicidade subjacente que o julgamento tem no livro e em Visconti, em seus desdobramentos quase kafkianos.

Mas o trecho final, da conversa entre Meursault e um padre, são Camus em sua forma mais pura -é um trecho forte, em que a tormenta existencialista do personagem se faz notar. E Ozon ainda atualiza o material bem no fim, com um aceno ao argelino morto, que no livro é totalmente esquecido diante da crise de Meursault -mas que, aqui, recebe um olhar ao menos atencioso, ainda que discreto.