SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Para Rogério Duprat, compositor das trilhas dos filmes de seu primo, Walter Hugo Khouri, o cineasta tinha um problema ser artista. A brincadeira ganha traços de verdade pelas páginas do livro de Donny Correia pela editora Cosac, o primeiro a fazer um panorama da carreira do autor a partir de uma extensa pesquisa em seu acervo.
Por um lado, há o homem de ideias, que fez uma obra coerente e particular, mas eclipsada ao longo das décadas. Descolado de movimentos, investiu num cinema filosófico, estrelado por algumas das maiores beldades do país Norma Bengell, Lílian Lemmertz, Selma Egrei e imerso na psicologia e no erotismo de suas personagens.
Seja com “Noite Vazia”, de 1964, sua obra mais conhecida, sobre dois homens que tentam vencer a melancolia da metrópole perambulando entre bares e acompanhantes, seja com “Amor, Estranho Amor”, de 1982, o tal filme que Xuxa barrou por décadas pelas cenas em que seduz um rapazote.
“A polêmica toda criada pós-filme não se sustenta quando você analisa o que ele é dentro da poética do Khouri e na época em que foi lançado”, diz Correia.
O pesquisador busca redimir a produção como um drama político e erótico, que cutuca o regime militar ao abordar os conchavos entre políticos paulistas e mineiros num grande bordel, às vésperas do golpe de Getúlio Vargas, em 1937. Tudo sob a perspectiva do jovem Marcelo, filho de uma das prostitutas, vivida por Vera Fischer.
O capítulo sobre a obra é um dos mais extensos do volume, que mistura crítica e análises psicanalíticas, além de entrevistas e arquivos guardados pelo próprio Khouri e hoje preservados pelo seu neto, Wagner, num apartamento. “Meu avô deixou um material extremamente organizado”, diz ele, que separou roteiros, cartas, fotos e recortes de jornal por produção.
Nas páginas sobre “Amor, Estranho Amor”, lê-se como o filme foi um sucesso na época de seu lançamento, com mais de 1 milhão de espectadores, e que Xuxa, na verdade, só entrou no filme pela insistência de Pelé amigo de Khouri e que à época namorava a jovem modelo gaúcha.
Foi a partir de 1987, com a volta do filme aos cinemas e com o lançamento da fita VHS, que tudo azedou. Xuxa havia se tornado a rainha dos baixinhos na Globo e embargou a obra junto a Aníbal Massaini Neto, produtor do filme, já que seu contrato não citava a distribuição em outras mídias. Difamada pelas supostas cenas de pedofilia, a obra sumiu das salas e das prateleiras das locadoras e só voltou a circular em 2021.
Este é apenas um dos episódios que enfocam não o Khouri artista, mas o trabalhador de cinema, que enfrentou as precariedades do mercado nacional para realizar uma obra numerosa 26 longas entre 1951 e 1998, feitos à sua imagem e semelhança.
Obra, no caso, que espelhou um paulistano da avenida Paulista para baixo, como frisava que começou no metiê no final dos anos 1940, na companhia Vera Cruz, ganhou experiência em aventuras como “Fronteiras do Inferno” e o noir “Estranho Encontro”, antes de mergulhar num projeto autoral dedicado a cutucar questões mais existenciais do que politizadas.
“O Khouri falava que seu filme era um só. Um cinema de atmosfera, à procura de algo que fermenta em nós”, diz Correia. “Mesmo em seus filmes de gênero, a gente vê indícios dessa busca.”
Longe das camadas populares, ganhou a fama de alienado ou imitador de Bergman e Antonioni, em oposição às posturas de filmes do cinema novo, como “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. “Enquanto o Corisco de Glauber Rocha hipnotizava o europeu que sofria de remorso histórico, Khouri mostrava que a burguesia é um câncer que se manifesta em qualquer parte do mundo”, afirma Correia.
Numa época em que a elite do cinema nacional buscava sua identidade nos rincões do país, Khouri fez em “Noite Vazia” seu maior sucesso, apresentado no Festival de Cannes de 1964 uma crônica do espírito paulistano blasé, de luto permanente, um sentimento que, para Correia, já se entrevê na obra de José Medina, pioneiro do cinema mudo.
Daí a noite erótica entre os homens, vividos por Mário Benvenutti e Gabriele Tinti, e as mulheres do filme, Norma Bengell e Odete Lara, não chegar a nada, senão à ruína moral. E, prova de que a obra não era apolítica, Khouri teve problemas com a censura. Não pelas cenas de seminudez, mas por não dar um final redentor ao personagem de Benvenutti, um pai de família.
Não tivesse revertido essa situação, a carreira de Khouri poderia ter ruído, já que esta era uma produção da Kamera Filmes, recém-fundada por ele e seu irmão. Anos depois, enfrentariam percalços financeiros, quando os dois viraram sócios majoritários da já falida Vera Cruz, evitando que ela fosse tomada pelo então Banco do Estado de São Paulo.
O fato é que o sucesso de “Noite Vazia” ajudaria a amortecer a bilheteria fraca dos seus dois longas seguintes ”O Corpo Ardente”, de 1966, e “As Amorosas”, de 1968, que juntos formam a chamada trilogia cinza.
Neste primeiro, a atriz francesa Barbara Laage vive uma ricaça aborrecida com a vida de aparências que se refugia com o filho papel de Wilfred, filho de Khouri na casa de campo da família. Lá, terá uma epifania ao encontrar um corcel indomado.
Já o capítulo sobre “As Amorosas” destaca as diferentes versões do roteiro, que dão a ver o processo criativo do cineasta. Aqui, a política se manifesta de maneira mais evidente na sua obra, ressaltando a descrença no engajamento, com Paulo José no papel do angustiado estudante Marcelo um personagem arquetípico que se desdobraria em outros filmes sob esse mesmo nome.
“Marcelo é a cristalização desses desejos humanos que nunca se completam. Ele pode ser desde o adolescente que não quer perder o conforto da infância até o executivo que pode comprar tudo e todas as mulheres que quiser, e que não se satisfaz nem seduzindo a própria filha”, diz Correia, se referindo a “O Último Êxtase”, de 1973, e “Eu”, de 1987, com Tarcísio Meira.
Mesmo com diferentes matizes, masculino e feminino são ambos centrais no universo khouriano, como ressaltam as análises de filmes como “O Palácio dos Anjos” sobre um trio de garotas que empreendem seu próprio bordel e “As Deusas” repleto de associações a Jung, ao pintor Ismael Nery e à filosofia oriental.
É na pele da atormentada Ângela que Lílian Lemmertz, no filme de 1972, se consolida como a diva do cineasta, uma relação que culminaria no metalinguístico “Paixão e Sombras”, de 1977. Na história, um diretor vaga por um estúdio da Vera Cruz, prestes a virar supermercado, e sofre por ter perdido sua estrela-fetiche, vivida por Lemmertz, para um contrato de TV. De maneira similar, Khouri havia abandonado um projeto com ela, então dedicada a novelas.
“O Khouri representa as mulheres como esfinges, inacessíveis ao olhar masculino. Ele ia na contramão daquela época e foi tachado de fazer pornochanchadas chiques”, afirma Correia. No livro, os depoimentos de atrizes como Monique Lafond e Nicole Puzzi corroboram essa visão rara na Boca do Lixo paulistana. Foi lá, afinal, onde Khouri conseguiu recursos para vários de seus filmes a partir da década de 1970.
De certa forma, os caminhos que o cineasta tomou para sobreviver na indústria são, também, o que dificultam o acesso à obra hoje. Apenas sete obras pertencem à família, segundo Wagner, o neto. Mesmo com boas cópias sob a guarda da Cinemateca Brasileira, a digitalização é um processo caro.
Tema de uma mostra ampla em 2023, Khouri ocasionalmente volta à programação do espaço em São Paulo. Há algum tempo, a família planejou um lançamento em DVD, mas, na prática, se tornou inviável sem um parceiro que ajudasse nos custos.
“Vários dos filmes estão no YouTube. Só não mandei tirar porque eu não tenho como oferecer uma alternativa. Apesar da infração de direitos autorais, pelo menos a pessoa consegue ver numa qualidade ruim. Está cumprindo uma função social”, afirma Wagner.
Ao contrário do pai, músico, e da mãe, artista plástica, o neto enveredou para a economia e o marketing e diz encarar a herança de forma pragmática. “Não sou o maior especialista na obra do meu avô, mas sou guardião desse acervo”, diz. “Adoraria que existisse um Instituto Walter Hugo Khouri. Esse material tem de ser digitalizado, ir para o público num ambiente museológico”, afirma, citando que busca um lar adequado para os milhares de documentos.
Apesar das quase 400 páginas, o livro de Correia deixa alguns tesouros para o futuro. O professor prepara um volume separado para destrinchar os filmes de terror “As Filhas do Fogo” e “O Anjo da Noite”, enquanto Wagner planeja um livro de fotografias do avô e uma exposição desse material, com curadoria de Gabriel Pérez-Barreiro.
“Em quase todos os filmes, ele tirava fotos de cena e reunia tudo naqueles álbuns de casamento de antigamente. Só do ‘Noite Vazia’ são três, recontando o filme em diferentes ângulos, com cenas inéditas, atores que não entraram”, diz o neto. “E a maioria delas em ótimo estado, considerando que têm 70 anos.”
O CINEMA DE WALTER HUGO KHOURI
– Quando 6 de setembro, sábado, às 16h. Conversa com o autor e as jornalistas e pesquisadoras de cinema Joyce Pais e Laura Cánepa, seguida de autógrafos e brinde no terraço
– Onde Biblioteca Mario de Andrade – r. da Consolação, 94, São Paulo
– Preço R$ 129 (352 págs.)
– Autoria Donny Correia
– Editora Cosac
– Link: https://cosacedicoes.com.br/products/o-cinema-de-walter-hugo-khouri?srsltid=AfmBOooPAjNUskPehyKXVZLrrSGdg4ynMSHfJ99S5-0F-DDMaYwvs1Sm