BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O MME (Ministério de Minas e Energia) abriu consulta pública para um novo leilão de energia no país com regras que permitem a participação de usinas a carvão. A decisão causou incômodo em outras áreas do governo, como no Ministério do Meio Ambiente, e acendeu críticas de entidades do setor —que apontam riscos técnicos e ambientais.

O debate no governo Lula (PT) surge a pouco mais de dois meses da COP30, conferência da ONU sobre clima que será realizada no Brasil. O carvão é a fonte mais poluente da matriz elétrica e pouco compatível com o objetivo central do certame, que é contratar potência, ou seja, geração rápida de eletricidade para atender picos de consumo no fim da tarde.

O país vê hoje sua demanda crescer rapidamente na hora do pôr-do-sol, quando as pessoas chegam em casa e a geração solar desaparece. Por isso, o sistema precisa receber energia em curto intervalo de tempo.

O problema é que usinas a carvão, ao serem acionadas, em geral precisam de muitas horas para atingir sua capacidade plena de geração. Também demoram muito tempo para se desligarem totalmente após receberem o comando de parada.

Victor Hugo iOcca, diretor de Energia Elétrica na Abrace (Associação dos Grandes Consumidores de Energia e Consumidores Livres), afirma que contratar usinas a carvão para atender à necessidade de potência no fim da tarde é equivocado porque, na prática, elas começarão a gerar energia muitas horas antes do período necessário.

“A usina vai começar a rampar [iniciar a sua capacidade de geração] na hora do almoço. Como ela tem rampa comprida, ela vai gerar energia quando não precisa gerar”, afirma.

Na prática, a contratação pode adicionar ainda mais energia durante o dia, quando o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) já interrompe a produção de renováveis em diversas unidades para que o excesso de eletricidade não cause danos ao sistema. “Ela [usina a carvão] vai entregar energia quando estamos parando de gerar energia solar e eólica”, diz iOcca.

Geradores eólicos e solares têm reclamado reiteradamente dos prejuízos com as interrupções atuais e citam uma fatura acumulada de R$ 5 bilhões, que pode acabar sendo paga pela população. É esse problema que tende a se agravar caso seja adicionada mais energia no meio do dia.

Por enquanto, ameniza as preocupações dos críticos o fato de que as regras preliminares divulgadas pelo governo trazem limitação à competitividade dessas usinas. Mesmo representantes do setor carvoeiro dizem que o tempo estabelecido para geração de energia nas normas divulgadas até agora restringe muito a participação desse tipo de usina.

Outro ponto de alívio é que a fonte vai competir no mesmo grupo dos empreendimentos a gás natural, e por isso tende a perder por ser mais cara. O preço da energia a carvão é o segundo mais caro, perdendo apenas para a geração de eletricidade a partir de resíduos sólidos.

Mesmo assim, há preocupação de que as regras sejam modificadas durante as discussões de forma a beneficiar o carvão até a publicação do edital definitivo. Empresários do segmento já relatam que devem abordar o assunto durante a fase de consulta pública com o objetivo de se tornarem aptos para a disputa.

Fernando Zancan, presidente da ABCS (Associação Brasileira do Carbono Sustentável, que representa o setor carvoeiro), afirma que as empresas vão sugerir mudanças. “Criamos um grupo de trabalho e vamos analisar alguma proposta de talvez melhorar um pouco os indicadores. Vai depender de a gente conseguir”, afirma.

Críticos citam ainda risco de representantes das usinas a carvão relatarem que conseguem atender aos requisitos sem que isso seja verdade, e depois usarem artifícios administrativos ou judiciais para fornecer energia e serem remuneradas. Além disso, afirmam que o número de participantes da fonte carvão pode ser restrito a apenas 5. Isso porque, das 13 usinas a carvão em funcionamento no Brasil hoje, a maioria opera para autoprodução.

Procurado pela Folha sobre o tema, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima enviou nota em que “manifesta preocupação em relação à consulta pública”. “A medida, em vez de impulsionar a transição energética justa, contraria os compromissos climáticos assumidos pelo Brasil no cenário internacional, em especial sob o Acordo de Paris”, afirmou a pasta.

A pasta comandada pela ministra Marina Silva afirma que o MME liderou o debate sobre o uso da transformação energética no debate climático e que o processo contraria as premissas do Plano Clima, voltado ao corte de emissões. “A consulta pública para contratação de usinas termelétricas a carvão […] contradiz as ações previstas no Plano Clima. A expansão do carvão na matriz elétrica brasileira pode prejudicar também o processo de descarbonização de setores como transportes e cidades”, afirma a nota.

O MMA lembra na nota que já se posicionou contra a contratação de uma usina a carvão recentemente em uma ação movida por partidos políticos no Supremo Tribunal Federal (STF). Conforme publicou a Folha, a usina de Santa Catarina foi contratada com preço acima da média após uma lei do Congresso e aval do MME.

A insatisfação com o carvão no leilão de energia também já chegou a outras pastas. Um integrante de outro ministério ouvido pela reportagem em caráter reservado classificou a decisão como “incompreensível”.

Uma análise elaborada pelo instituto ambiental Arayara, com base em nota técnica produzida pelo MME sobre o leilão, reforça esse ponto ao afirmar que as regras preliminares criam brechas para perpetuar a presença do carvão no sistema sob o pretexto de segurança energética. O instituto diz que os parâmetros criam chance para vitória das usinas a carvão e que elas poderiam ficar ligadas em 75% do tempo do ano.

“Ao incluir o carvão em um leilão que deveria ser de potência flexível, o MME não apenas distorce os objetivos da política energética, mas desvia o Brasil do caminho da transição justa e sustentável que a sociedade demanda”, afirma o instituto. “O governo mais uma vez perde a oportunidade de fazer uma proposta de reforma do setor elétrico que abarque a complementaridade das fontes renováveis, hidrelétricas reversíveis, baterias e ampliação da infraestrutura de escoamento, para tratar de modo pontual e superficial os problemas do setor.”

O setor carvoeiro tem buscado mostrar preocupação com o problema das emissões. Representantes têm, por exemplo, procurado na China soluções tecnológicas que prometem filtrar o resultado da queima do carvão e transformar o produto final em fertilizante. Mesmo assim, reconhecem que a tecnologia pode demorar até dez anos para ser realmente implementada no Brasil.

Procurado, o Ministério de Minas e Energia afirmou que as diretrizes do leilão incluíram fontes firmes, entre elas a hídrica, gás natural, carvão e óleo, por apresentarem operação controlável. “Tais usinas funcionam como lastro de segurança, garantindo que o sistema elétrico possa absorver cada vez mais energia de fontes limpas, como solar e eólica, sem risco de comprometimento do sistema”, afirma.

“Cabe destacar que, no caso de usinas a carvão, apenas usinas já existentes poderão participar do certame. O leilão foi planejado para proporcionar a flexibilidade operacional do sistema elétrico, estimular a competição entre diferentes fontes e, consequentemente, trazer maior benefício ao consumidor”, diz a pasta.

O MME diz ainda que o leilão prevê em sua sistemática mecanismos para valorizar os empreendimentos que possuem maior flexibilidade operativa. “Dessa forma, a contratação consegue equilibrar a melhor relação entre custos de operação e flexibilidade. Nesse sentido, a participação de empreendimentos a carvão competindo com empreendimentos a gás natural permite ampliar a competição e reduzir a tarifa paga pelo consumidor de energia elétrica”.