FOLHAPRESS – “3 Obás de Xangô” é um filme que nos leva a vários lugares. No meu caso pessoal, primeiro, me fez lembrar de um velho programa Roda Viva com Adolfo Bioy Casares. Ali, vários paulistas perguntavam ao escritor argentino se conhecia autores brasileiros célebres: Guimarães Rosa, Machado de Assis. Ele não conhecia nada. Então, alguém perguntou se nada na literatura brasileira lhe interessava, ele respondeu, para espanto geral, que gostava muito de Jorge Amado.
Compreende-se: os entrevistadores, paulistas quase tão pedantes quanto eu mesmo, naquele tempo (1995) desprezávamos Amado, já não sei bem por quê. Mas não é espantoso que um escritor de textos fantásticos gostasse dele.
Amado é a Bahia, e a Bahia é um romance fantástico. Ele, por exemplo, é um Obá de Xangô, portanto uma espécie de embaixador desse deus da mitologia afrobrasileira junto aos homens (se entendi bem a função).
Amado forma com Carybé e Dorival Caymmi a trinca de obás. Embaixadores de uma rica tradição, a do candomblé. Isso me remete ao pianista Dante Pignatari me explicando que nas religiões de origem africana os deuses, como os da Grécia, estão entre nós.
O filme de Sergio Machado mostra algo um pouco diferente: os deuses das religiões africanas estão também em nós. Entram nas pessoas durante os rituais. Não é fácil para um paulista compreender a magia baiana, a intervenção do sobrenatural no cotidiano. Ali os afetos vêm antes de tudo.
É isso que o documentário de Machado trará ao espectador, recorrendo tanto a documentários quanto a trechos filmados (vários de Nelson Pereira dos Santos, mas também filmes de diretores baianos, como Luis Paulino dos Santos), passando por entrevistas e, no caso de Caymmi, músicas. Nada mais fantástico do que vê-lo explicar como dirigiu os gestos de Carmen Miranda durante a filmagem de “Banana da Terra” (1939).
Mas também lá está Amado, ora contando o início de seu amor por Zélia Gatai, ora mostrando, no Pelourinho, os lugares de onde saíram seus personagens. Nenhum foi inventado, garante.
Tudo isso serve para nos introduzir à defesa e ilustração do candomblé e suas variantes. Religião de escravos ou ex-escravos era, como a capoeira, perseguida sistematicamente, seja pelo catolicismo, seja pela polícia. Há uma bela cena com delegados e investigadores atormentando capoeiristas presos. Mas havia também os ataques a terreiros, não raro destruídos.
O fundamento dessa defesa das tradições negras remete, claro, ao entranhado racismo brasileiro. Nesse ponto o filme é bem educativo. Porque o racismo persiste, e as religiões de origem afro, antes combatidas pelo catolicismo, hoje não raro são satanizadas por pregadores de igrejas neopentecostais.
“3 Obás” muda um pouco o eixo das relações do documentário com a Bahia. As gerações mais recentes, a partir dos anos 1960, já se tornaram bem conhecidas. As anteriores ficaram um pouco de lado. “3 Obás” tem o mérito, entre outros, de colocá-las de novo no mito da Bahia.
3 OBÁS DE XANGÔ
– Avaliação Bom
– Quando Estreia nesta quinta (4)
– Produção Brasil, 2024
– Direção Sérgio Machado
– Roteiro Sérgio Machado, Gabriel Meyohas, Josélia Aguiar e André Finotti