SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Observador habitual de anúncios de imóveis, Cassio Reina estranhou quando se deparou com ofertas de aluguel de curta temporada -como os oferecidos pela plataforma Airbnb- em apartamentos do condomínio onde é investidor na zona oeste de São Paulo.
As unidades em questão ficam na parte do empreendimento destinada a moradores de baixa renda que tiveram incentivo fiscal para obter a casa própria.
No fim de maio, a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) publicou um decreto que proibiu esse tipo de aluguel em unidades destinadas a atender demanda por moradia social na cidade. Moradores e o Ministério Público, porém, dizem que a medida não é fiscalizada e, por isso, os casos tem sido levados à Justiça.
Foi o que aconteceu com Cassio. Ele conta que decidiu recorrer à Justiça após descobrir que a incorporadora One Innovation havia alterado a convenção condominial para permitir os aluguéis, não previstos na política habitacional.
A mistura de moradores e visitantes esporádicos gerou embates recorrentes no condomínio. “Era um entra e sai a qualquer hora de mala com rodinhas na parte residencial e pessoas estranhas frequentando a área de lazer”, diz o investidor, dono de um flat no mesmo condomínio na ala onde a estadia por curta temporada é permitida.
O incômodo reuniu cerca de 20 moradores na ação judicial que resultou em liminar que vetou a destinação das unidades HMP (Habitação de Mercado Popular, paras famílias com renda entre 6 e 10 salários mínimos) aos aluguéis de curta duração.
“Havia uma ilegalidade porque os adquirentes compravam para explorar como flat”, diz a advogada que representa os moradores, Liliana Almeida.
A One Innovation disse que, desde 2021, exige a entrega de uma declaração dos compradores de que se enquadram nos requisitos exigidos pelas políticas habitacionais de interesse social, e que a venda das unidades no condomínio citado foi realizada conforme a legislação vigente à época.
Apesar da decisão, os próprios moradores se responsabilizaram pela fiscalização do uso das unidades, afirma Cassio. Houve situações em que o hóspede chegava com a mala e era barrado de entrar no condomínio, segundo a advogada. “Um proprietário recebeu o hóspede na portaria com um abraço para fingir que eram amigos, mas o porteiro percebeu e barrou. O próprio hóspede percebeu algo errado e foi embora.”
Desde 2014, no âmbito do Plano Diretor, a legislação paulistana permite a produção privada de unidades de interesse social, que são voltados para famílias com renda de 3 a 10 salários mínimos. Em troca, as construtoras recebem subsídios da prefeitura, como redução ou isenção do IPTU.
Até o decreto que proibiu a prática em unidades populares, a única regra vigente era que cada condomínio deveria tratar o assunto nas respectivas convenções.
“Existe um boom imobiliário com uma infinidade de imóveis pequenos em que o rendimento de aluguel por diárias é muito maior do que o mensal, o que cria uma verdadeira guerra nos condomínios”, diz o advogado Rodrigo Karpat, especializado em direito imobiliário.
No prédio onde mora o professor Diogo Canhadas, na região central, o vaivém de malas no corredor também é recorrente, apesar de se tratar de unidades destinadas à moradia de famílias com renda de até seis salários mínimos. “Ninguém entendeu como isso vai ser fiscalizado”, disse.
Ele conta que o condomínio instalou sistema de reconhecimento facial nos acessos à área de lazer após um visitante de curta temporada arrombar o portão para usar a piscina que estava fechada para reformas. “Há casos também de superlotação, com cinco pessoas hospedadas de uma vez nos estúdios de 25 metros quadrados.”
Apesar das mudanças nas regras, a fiscalização é ineficiente, segundo o promotor de Habitação Marcus Vinicius Monteiro dos Santos.
Autor de ação civil pública para investigar desvios na política habitacional, o promotor afirmou ter recebido entre janeiro e agosto deste ano cerca de 6.500 avisos de possíveis fraudes em transações envolvendo empreendimentos de interesse social na cidade.
Desse total, 13 casos tiveram as investigações concluídas pela administração municipal, dos quais dois resultaram em notificação para pagamento de multas, segundo o promotor. “A política pública só favorece os interesses do mercado imobiliário, e a prefeitura não tem como verificar quem está de fato morando nas unidades”, diz.
Segundo a gestão Nunes, desde janeiro, foram aplicadas 12 multas a empresas por descumprimento das regras de destinação das habitações de interesse social.
Ainda de acordo com a administração, há previsão de lançamento de uma plataforma para receber a documentação da venda dessas unidades e comprovação de renda dos moradores para “aprimorar os processos fiscalizatórios”.
Em apelação no mês passado, o promotor citou a falta de fiscalização por parte da gestão municipal para reiterar o pedido de encerrar a concessão de subsídios fiscais a construtoras interessadas no mercado de interesse social. O mesmo pedido foi feito no início deste ano, mas negado pela Justiça. “Há uma inversão do objetivo que é atender as famílias pobres”, diz o promotor.
No âmbito dessa ação, os imóveis investigados terão alerta na matrícula. A venda ou aluguel dessas unidades só podem ser feitos a compradores com comprovação de renda dentro dos limites previstos em lei.
A Câmara Municipal tenta instalar uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) desde abril para investigar o uso irregular de incentivos da prefeitura por construtoras. O processo ainda não começou por falta de indicação dos membros, atribuição da presidente da Casa, Ricardo Teixeira (União Brasil). Recentemente, partidos da oposição tiveram decisão judicial favorável à instalação, mas ainda assim não houve progresso. Procurada, a presidência da Câmara não comentou.
De acordo com o vereador Gilberto Nascimento (PL), presidente da comissão extraordinária que trata do assunto, não há perspectiva de votação de projeto que regulamente os aluguéis de curta temporada. “Estamos com uma insegurança jurídica, não há uma padronização”, diz.
Procurado, o Airbnb, plataforma de aluguel por temporada, disse que “está alinhado com o uso responsável da plataforma em conformidade com as políticas de moradia social na cidade de São Paulo”, mas não comentou a falta de fiscalização. A Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias) também foi procurada, mas não respondeu até a publicação.
Regras para Airbnb em SP
ONDE PODE
– Qualquer condomínio residencial desde que a prática não conste como expressamente proibida em convenção condominial
– Em condomínios onde há permissão, os visitantes devem seguir as regras como qualquer outro morador, como respeitar o horário de silêncio, uso de áreas comuns, cadastro de visitantes e normas de segurança
ONDE NÃO PODE
– Unidades habitacionais de interesse social (HIS) e habitação de mercado popular (HMP)
– Condomínios com proibição expressa a atividades não residenciais em convenção
O QUE DIZ A LEGISLAÇÃO
– O aluguel por temporada é previsto pela lei do Inquilinato (8.245/1991). Apesar de não estipular prazo mínimo de permanência, o texto prevê limite de até 90 dias em contratos de aluguel de temporada. Caso exceda, é necessário formalizar como aluguel residencial
– Desde 2019, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) entende que condomínios podem proibir a prática por meio de restrição ao uso das unidades a atividades estritamente residenciais na convenção condominial
– Desde o fim de maio, a Prefeitura de São Paulo entende que o aluguel por curta temporada não configura uso residencial de unidades destinadas a programas de moradia e, por isso, é vedado a HIS e HMP
– Projeto de lei do Senado (4/2025) no âmbito da reforma do Código Civil quer que a proibição a hospedagem de curta duração funcione como regra geral e só ocorra em condomínios com permissão expressa em convenção ou assembleia