BELÉM, PA (FOLHAPRESS) – Na passagem Fé em Deus, em Belém, a casa de Helena de Amorim Gomes, 67, deixou de ter vizinhança direta. Os dois imóveis vizinhos, de lado a lado, foram demolidos –uma escavadeira ainda derrubava paredes e remexia o entulho de um deles na manhã da última quarta-feira (27).

A casa simples e apertada de Helena, com uma entrada centralizada e um pavimento superior de madeira, permanecia de pé.

“O que eles nos disseram é que precisa demolir para ajeitar o canal, por causa da COP30”, diz Helena, citando a conferência climática que será realizada na capital paraense em novembro.

Na passagem Vitória, o casal Gabriel de Lima Tavares, 73, e Rosilda da Silva Soares, 74, empacota seus bens —dos mais afetivos, como um quadro com a foto de uma filha, a eletrodomésticos— desde março. É uma mudança que nunca acontece, numa rua que virou um lugar abandonado, quase sem ninguém e com casas demolidas ou deixadas para trás de ponta a ponta.

“O que é dito para gente é que vão abrir a rua e ajeitar o canal por causa da COP30”, afirma Gabriel. O canal é o Caraparu, que passa no quintal da casa dos dois. “Hoje, essa rua está parececendo a Faixa de Gaza”, compara ele, numa referência imagética à guerra em curso em Gaza, empreendida por Israel.

A realização de obras de macrodrenagem e saneamento em canais na periferia de Belém, dentro de um escopo de intervenções programadas para a COP30, passou a envolver a demolição de casas que estão no caminho desses canais, com remoções de famílias que ocupam esses espaços por uma vida inteira.

A preparação do evento —encontro diplomático, com representantes de mais de 190 países, que pela primeira vez será realizado na Amazônia— vem passando por gargalos, que geram crises momentâneas ou mais duradouras, como a dos custos altos para hospedagem das delegações.

Para centenas de famílias da periferia de Belém, porém, os efeitos da COP30 têm outras dimensões.

O evento vem representando uma obrigação de deslocamento para outros espaços, muitas vezes ainda mais periféricos. E são esses moradores da cidade, que é a capital com mais áreas de favelas no país, que vivenciam os efeitos da crise climática de forma mais direta, com alagamentos constantes e temperatura elevada dentro das casas.

A reportagem da Folha de S.Paulo constatou que as demolições de casas estão em ritmo acelerado no curso do canal Caraparu, que integra a bacia do Tucunduba. A ocupação desordenada das margens do canal, no bairro Guamá, fez o curso d’água praticamente desaparecer em algumas partes, e as obras tentam dar forma e fluidez ao canal. Para isso, centenas de casas devem ser retiradas do caminho.

Trabalhadores que atuam nas demolições dizem que já houve a derrubada de 100 a 200 casas. O Governo do Pará, responsável pelas obras, afirma que foram finalizadas cerca de 50 negociações para indenização de moradores. As derrubadas dos imóveis ocorrem quando o dinheiro é depositado às famílias.

Documentos do projeto do Caraparu mostram que boa parte das passagens Fé em Deus e Vitória estão na faixa prevista para a consolidação do canal, o que demandará desapropriações. Segundo esses documentos, 595 imóveis “deverão ser remanejados para execução da obra”.

A macrodrenagem do Caraparu —que significa, em boa parte dos trechos, a reconstrução do canal— é feita por meio de um contrato do Governo do Pará com um consórcio de empreiteiras, no valor de R$ 123,9 milhões.

O BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) financia a obra. Ao todo, o banco financia a intervenção em 12 canais em Belém, no valor de R$ 1 bilhão, dentro do escopo de projetos voltados à realização da COP30.

“O contrato de financiamento para revitalização do canal Caraparu está regular. O Governo do Pará é a instância responsável pela execução e realização da obra”, diz o banco, em nota.

Os projetos de outros canais que estão em obras também preveem a necessidade de desapropriação e demolição de casas. Os documentos de sete empreendimentos citam a existência de 1.512 “unidades de imóveis conflitantes com a implementação do projeto, que deverão ser remanejadas”.

O Governo do Pará afirma que a revitalização do canal Caraparu é necessária para garantir a existência de serviços públicos básicos, como a coleta de lixo por um caminhão, a passagem de uma ambulância ou a presença de um carro da polícia, além do livre trânsito pelas ruas estreitas.

A macrodrenagem da bacia do Tucunduba vai beneficiar 300 mil moradores, segundo a gestão do governador Helder Barbalho (MDB). “As ocupações dos leitos e margens dos canais favorecem os alagamentos nos entornos, pois diminuem a área de vazão da água das chuvas”, disse, em nota. Segundo o governo, a atual situação gera risco para a saúde e a segurança das pessoas.

Indenizações são feitas, nos casos das demolições, conforme a avaliação do imóvel, cita a nota. “Quem faz a opção por uma unidade habitacional recebe um auxílio-moradia até a entrega da nova residência.”

Famílias que se veem diante da obrigação de deixar suas casas afirmam que os valores pagos são baixos e insuficientes para a compra de novos imóveis. Elas relatam um aumento expressivo do preço de casas na periferia, como consequência da própria COP30.

“Depois que surgiu esse negócio de COP30, tudo aumentou”, diz Rosana Amorim, 37, que visitava a mãe, Helena, durante a demolição da casa ao lado.

Helena mora com o marido, dois filhos e oito netos na casa que precisará ser demolida. Ao todo, o imóvel tem uma sala, um quarto térreo –conjugado com uma cozinha– e quatro quartos na parte de cima, feita com madeira, um puxadinho sobre a base simples do imóvel.

“O dinheiro não saiu ainda, é por isso que seguimos aqui”, diz Helena. O valor acertado foi de R$ 110 mil, segundo ela. Equipes do governo local fizeram as primeiras medições há cinco meses, afirma. “Não considero o preço justo, porque a gente não acha mais casa barata.”

Não há uniformidade nas demolições na Fé em Deus. Um mercadinho ao lado, que funciona no quintal de uma casa, segue aberto normalmente. Em frente, a parte de baixo do sobrado do piloto de barco Fernando Tavares, 59, já foi parcialmente demolida, pelos próprios filhos, que removeram portas e janelas. Fernando segue com a família na parte de cima, à espera da indenização completa.

“Eles deveriam indenizar todos os moradores antes de começarem as demolições. É um risco muito grande. Eles metem as máquinas e treme a rua toda, as casas ficam abaladas”, diz Fernando, que atua no arquipélago do Marajó.

“Essa obra aqui é para anos e anos. Não fica pronta para a COP30. A gente quer pegar a parcela que falta antes da COP, senão vão abandonar tudo.”

Fé em Deus só passou a ser uma rua, mesmo, há seis anos, segundo Fernando. E já deixará de existir na prática, para dar espaço ao canal.

A passagem Vitória também é bem nova: o asfalto chegou há três anos, afirmam os moradores que ainda permanecem em suas casas.

A rua já não tem mais vida. O imóvel da barbearia está pelas metades, o mercadinho ao lado está trancado, as casas da frente estão quase todas demolidas. Bem perto do canal principal do Tucunduba, para onde corre o Caraparu, máquinas atuam na demolição de casas e abertura de espaços.

Gabriel e Rosilda moram no mesmo lugar há 43 anos. São uns dos últimos que remanescem na passagem Vitória. Eles convivem com demolições há meses. Os ex-vizinhos já se mudaram para outros pontos do Guamá, ou para bairros mais distantes, em razão dos preços dos imóveis. Ou mesmo para cidades vizinhas, como Ananindeua, colada a Belém, e Benevides, a 25 km.

“A gente fica triste, porque todo mundo está indo embora”, diz Rosilda.

O casal permanece na passagem Vitória enquanto o dinheiro da indenização não é depositado. O acordo já foi fechado há cinco meses, segundo eles.

“A gente fica nessa agonia. Eu quero uma casa que tenha pelo menos dois quartos, no Guamá, uma coisa do meu gosto. Mas não estamos achando.”