SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Conhecido por festas que seriam um reduto de paz, amor e união, o mundo do psytrance vem sendo abalado desde o início da guerra em Gaza. O cerne da questão é Israel, país de grande relevância para o gênero. O último choque veio em julho: o DJ israelense Skazi cancelou sua participação no Tomorrowland, um dos maiores festivais de música eletrônica do mundo, alegando preocupações com sua segurança.

Seu temor surgiu após ativistas pró-Palestina apontarem sua proximidade com as forças militares de seu país. Referência mundial para o psytrance e autodenominado “DJ de combate”, o artista já fez shows para o exército de Israel, produziu uma música para o grupo nacionalista The Civil Front e participou de um evento em memória da rave atacada pelo Hamas em outubro de 2023.

A festa era um braço do festival brasileiro Universo Paralello em solo israelense, apenas uma linha da longa relação entre os dois países no psytrance. Conhecido por seu andamento acelerado, batidas saturadas e texturas atmosféricas, o gênero move há décadas uma comunidade global que tem entre seus líderes, hoje, artistas e festas brasileiras e israelenses —um intercâmbio que suscita questões.

“Israel sempre foi o pólo do psy, é de onde saíram os principais artistas, nomes como Astrix, Infected Mushroom, Skazi, entre outros”, diz Pedro de Freitas, cofundador do Papo Paralello, podcast especializado em psytrance. “Mas hoje em dia o Brasil ultrapassou Israel em termos de festas e artistas: o público de Israel quer muito ver DJs brasileiros, muitos têm ido para lá, e tem DJs israelenses que veem o Brasil como o principal objetivo de carreira.”

Embora alternativa, a cena do psytrance no Brasil é consolidada. O calendário de festas no país dura o ano inteiro e vai de sul a norte, de festivais como o Amazontribe, na região de Manaus, a Cyclus, no Rio Grande do Sul. “As festas grandes hoje tem cerca de 15 a 20 mil pessoas, festas como a Flor da Vida, que ocorreu em março, chegam a ter um público de cerca de 25 mil pessoas”, afirma Freitas.

É comum que artistas israelenses se apresentem nesses eventos, e ver bandeiras daquele país na pista também é recorrente. O Festival Maya, em setembro, terá na programação o mesmo número de artistas brasileiros e israelenses. A própria Flor da Vida teve quatro artistas de Israel em sua última edição —o maior grupo de DJs estrangeiros do evento. A proporção também vale para o palco psytrance do Tomorrowland Brasil, marcado para outubro, que terá três DJs israelenses: Blastoyz, Infected Mushroom e Omiki.

No Brasil, o evento é realizado pelo festival belga em parceria com a DC Set e tem como diretor geral Mario Sergio Albuquerque. O empresário é também sócio e fundador do Espaço Arca. A casa iria receber a festa britânica Boiler Room no início de agosto, mas o evento foi cancelado por pressão de movimentos pró-Palestina: lideranças alegam que a companhia mantem laços com Israel por intermédio da firma de investimento KKR.

No dia seguinte ao cancelamento, o Espaço Arca recebeu o artista Nicolas Jaar cujo mais recente trabalho homenageia as populações mapuche, do Chile, e palestina. Outra grife de festivais que tem ligações com o fundo de aporte, o DGTL também cancelou seu evento no Brasil previsto para outubro.

“Nossa programação é guiada pelo talento e criatividade musical, não pela nacionalidade”, afirma Debby Wilmsen, porta-voz do Tomorrowland. “Medidas de segurança adequadas sempre estão em vigor para garantir a segurança de todos os envolvidos no festival, e temos acordos claros com todos os artistas sobre o que é e o que não é permitido no palco.”

Na edição belga do Tomorrowland, dois homens vistos com uma bandeira do exército israelense foram detidos e interrogados pela polícia. “Bandeiras são bem-vindas desde que sigam nossas regras de segurança e não promovam ódio, discriminação ou violência”, diz Wilmsen. “Reconhecemos que, no atual cenário geopolítico, a exibição de certas bandeiras pode ser sensível, e por isso monitoramos ativamente o espaço do festival e intervimos quando necessário.”

O psytrance surgiu nos anos 1980 em Goa, na Índia, no cruzamento entre movimento hippie, música eletrônica e um caldeirão de espiritualidade que jovens ocidentais buscavam no sul da Ásia. O som, um encontro de cânticos tradicionais, sequenciadores eletrônicos e atmosfera de raves, se tornou um fenômeno ao longo dos anos 1990, atraindo para a costa indiana gente do mundo todo, inclusive brasileiros e israelenses.

“Muitos jovens israelenses viajam por um tempo depois do serviço militar obrigatório, eles vão para a América do Sul ou para países da Ásia, e naquela época Goa era um destino muito comum”, afirma Bryan Meadan, pesquisador canadense radicado em Israel que estudou o início do psytrance naquele país. “Foi assim que o movimento chegou a Israel.”

A investigação de Meadan deu origem ao livro “Trancenational Alienation”, cujo título une o termo “alienação” a um jogo de palavras com trance e transnacional. “O nacionalismo era algo mal visto por aqueles jovens. Eles se identificavam muito mais com uma ideia de transnacionalismo”, afirma ele. “E também se identificavam muito mais com a comunidade trance do que com as forças armadas ou com Israel.”

Meadan conta que, à época, o psytrance se desenvolvia como cultura marginalizada em Israel. Eventos ocorriam às escondidas e seus organizadores tinham de lidar com abordagens policiais frequentes. “Para ir a um desses eventos, você tinha que receber uma mensagem no celular com um endereço e, depois, ao chegar nesse ponto, você recebia um mapa para chegar ao local da festa.”

A crescente popularidade do psytrance passou a representar, para parte da opinião pública, um choque às bases ideológicas do nacionalismo israelense —essenciais na fundação do país e no governo de Binyamin Netanyahu, então em seu primeiro mandato como premiê. “É o que chamo de pânico moral, quando o governo começou a atacar esse fenômeno: as festas passaram a ser ilegais, escondidas, secretas”, conta Meadan.

Nas últimas décadas, o psytrance virou um fenômeno de massa em Israel. A forte indústria tecnológica nacional, diz Meadan, também colaborou para a popularização ao facilitar o acesso à juventude local a ferramentas de produção e performance de música eletrônica. “Eu moro em uma comunidade pequena e semana passada um garoto de 16 anos comemorou seu aniversário em um parque aqui e a noite toda eles estavam ouvindo psytrance, é algo que se tornou mainstream”, diz Meadan. “É uma música de festa.”

Foi também durante esse período que artistas israelenses passaram a ganhar palco em outros países do mundo, alçados pelo sucesso local e proximidade com a Europa. O Brasil entrou no mapa a partir dos anos 2000, com festas como a Trancendence, em Goiás, que trouxe o Skazi, então um duo, pela primeira vez ao país naquela década.

“Na época a gente trouxe de Israel o Domestic e o Pixel, o Astrix veio pela festa Tribe, e eu também fui para Israel, toquei três vezes lá”, lembra Luiz Guilherme Salla, o DJ Feio, um dos organizadores da XXXPerience —festa itinerante que chegou a reunir cerca de 20 mil pessoas no seu auge.

Desde então, a cena do psytrance brasileira cresceu, com artistas e festas nacionais ganhando fama mundialmente e mantendo diálogo com a cena israelense.

Com o início da guerra em Gaza, contudo, Israel se tornou persona non grata para alguns setores da música eletrônica. Assim como nos casos de Boiler Room e DGTL, o festival espanhol Sónar foi alvo de boicotes por sua filiação à firma de investimentos KKR. Grupos e artistas pró-Palestina também se posicionaram contra ao clube alemão Berghain acusando sua organização de censura a manifestações políticas na casa.

Forjada no niilismo hippie e na jornada espiritual, do início em Trancoso, na Bahia, ao sucesso em Alto Paraíso, Goiás, a comunidade brasileira do psytrance parece impassível ao conflito. “O psy é a união de todos, no sentido de encontrar uma liberdade que hoje em dia as pessoas não tem: a festa é um domo, você entra ali e tudo fica para trás”, diz o DJ Feio.

Há, por outro lado, quem questione essa ideia. “Eu entendo que a presença de artistas israelenses em raves brasileiras é um tema complexo, especialmente no contexto do conflito, então é importante considerar questões éticas e políticas envolvidas”, afirma Bruno Ottoni, o DJ Xamã, residente da Universo Paralello.

“Acho que o Skazi errou, ele levantou uma bandeira muito séria em uma época muito difícil”, diz o artista, que afirma ser a favor da existência de dois estados, Israel e Palestina. “Embora o psytrance possa ser visto como um refúgio da realidade, eu acredito que é impossível separar totalmente a música da política e dos eventos mundiais.”

Para Meadan, os tempos de nação trance de Israel ficaram para trás. “O psytrance deixou de representar uma contracultura”, ele diz. “Mas também não acho que naquela época os artistas faziam música para protestar: eles só faziam aquela música porque eles podiam, porque gostavam.”