SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – Em uma encosta no bairro de São Rafael, a área verde surgia como um oásis em meio aos prédios e casas. A floresta, com animais e pequenos cursos dágua, se misturava aos quintais dos imóveis e sombreava o campo de futebol, principal espaço de convivência da comunidade.
Tratores, contudo, colocaram as árvores abaixo para a construção de um novo empreendimento. As obras foram temporariamente embargadas pelo Inema, órgão ambiental do Governo da Bahia, mas deixaram uma ferida na paisagem urbana.
Longe de ser isolado, o caso simboliza um dos principais desafios de Salvador na área ambiental em meio a um cenário de emergência climática: preservar áreas remanescentes de mata atlântica e ecossistemas considerados sensíveis como manguezais, restingas e dunas.
Salvador tem uma área de 694 quilômetros quadrados, equivalente a menos da metade da cidade de São Paulo. Com 2,4 milhões de habitantes, tem cerca de 3.500 moradores por quilômetro quadrado.
Com escassez de terrenos, a cidade é pressionada por novos empreendimentos imobiliários, pela expansão desordenada, pela venda de terrenos públicos e pela flexibilização da legislação sobre o uso do solo.
O norte da cidade é uma das áreas mais afetadas pelo desmatamento, que avança no entorno dos parques de Pituaçu, Vale Encantado e São Bartolomeu, e áreas da periferia como Mussurunga, Fazenda Grande e São Rafael.
O Diagnóstico da Vegetação do Bioma Mata Atlântica em Salvador, apresentado em 2016 pelo Ministério Público do Estado da Bahia, identificou mais 5.000 áreas remanescentes do bioma, sendo 3.000 em estágio médio de conservação.
O estudo foi incorporado ao PPDU (Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano) de 2016 o Ministério Público propôs que o mapeamento servisse de baliza para as autorizações de supressão de vegetação, mas isso não aconteceu nas gestões de ACM Neto (União Brasil) e Bruno Reis (União Brasil).
A promotora Cristina Seixas diz que a prefeitura não respeita as estratificações que definem as áreas de vegetação primária e secundária e tem autorizado desmatamento de locais que deveriam ser considerados de restrição. Em muitos casos, sob contrapartidas frágeis, como a doação de mudas de plantas, ela critica.
“Você tem uma quantidade de floresta já produzindo uma série de benefícios, desmata e vai plantar mudas. Mas essas mudas, muitas vezes, não conseguem superar o estágio de amadurecimento para substituir a floresta derrubada”, explica a titular da Promotoria de Meio Ambiente.
No bairro de São Rafael, ambientalistas e moradores questionam a autorização dada pela prefeitura para a derrubada de vegetação e apontam a falta de um plano de resgate dos animais, que foram mortos ou começaram a entrar em imóveis da vizinhança.
O desmatamento também afetou o microclima da área, usada para o lazer da comunidade. “Não tem mais mata, não tem mais uma sombra e ar fresco. Isso a gente já perdeu”, afirma a educadora Vanessa Ramos, 38, moradora do bairro.
Alguns quilômetros adiante, no bairro Fazenda Grande 4, foram devastadas áreas verdes em uma região que abriga 17 terreiros de candomblé. Nas religiões de matriz africana, as matas são consideradas sagradas, usadas para colocar oferendas, realizar preceitos e coletar folhas.
Um dos símbolos da luta pela manutenção das áreas verdes em Salvador, o Parque Ecológico Vale Encantado, em Patamares, viu surgir empreendimentos em seu entorno e é alvo de uma ofensiva legislativa. Em 2019, a Câmara reduziu a área do parque sob alegação de que continha terrenos privados.
O corredor ecológico possui 61 hectares de área com mata atlântica, restingas e manguezais e atua no controle de temperatura, poluição e escoamento pluvial da cidade. Ativistas defendem que o parque se torne uma área de proteção integral e abrigue o Refúgio da Vida Silvestre de Salvador.
“Salvador é uma cidade que sofre muito com a questão das mudanças climáticas. O regime de chuvas já está totalmente desequilibrado. Por isso é fundamental a existência dessas áreas verdes”, afirma a bióloga Tatiana Bichara, voluntária do coletivo SOS Vale Encantado.
O Parque de Pituaçu, que fica na mesma região e tem gestão estadual, teve a sua poligonal redesenhada nos governos Jaques Wagner (PT) e Rui Costa (PT), com pressão sobre as áreas verdes, aponta o Ministério Público.
Salvador também possui poucas árvores nas regiões mais densamente povoadas, com impactos na ventilação e áreas de sombra. Dados do Censo 2022 apontaram a capital baiana como a segunda menos arborizada do país cerca de 1,5 milhão de pessoas vivem em ruas onde não há uma única árvore.
Na avaliação dos ambientalistas, a situação tende a se agravar com a venda de áreas públicas que abrigam áreas verdes. Em 2023, a Câmara Municipal aprovou um projeto do prefeito que autorizou a desafetação de 40 terrenos.
Ao menos dois leilões foram suspensos por decisões judiciais, barrando a venda de áreas no Corredor da Vitória e no morro Ipiranga. A Justiça também analisa a constitucionalidade da lei municipal que autorizou a venda dos terrenos públicos.
Em nota, a Prefeitura de Salvador disse que segue a legislação vigente e citou um estudo da plataforma MapBiomas que aponta Salvador como a segunda capital com maior proporção de vegetação urbana, com 26,2% do território com áreas verdes.
Destacou o plantio de mudas de espécies nativas e a implantação do Centro de Interpretação da Mata Atlântica, Parque Pedra de Xangô, Horto de Restinga e Viveiro de Coqueiros, além dos futuros parques da Mata Escura e de Canabrava.
Ainda segundo a prefeitura, os terrenos leiloados são áreas que já sofreram influência da atividade humana e os recursos da venda serão usados para investir na cidade, inclusive na conservação ambiental.
Sobre o índice de arborização do IBGE, destacou que este inclui as árvores ao longo das vias. E ponderou que Salvador tem um traçado urbano não planejado, com calçadas estreitas que limitam o plantio de árvores.
O Inema, órgão ambiental do governo estadual, disse que monitora e fiscaliza as áreas com vegetação nativa e tem adotado medidas preventivas, como o cercamento dos parques de Pituaçu e São Bartolomeu.
ENTENDA A SÉRIE
A série “Desafio Ambiental nas Capitais”, às vésperas da COP30 (conferência das Nações Unidas que será realizada em novembro em Belém), aborda problemas que grandes cidades brasileiras enfrentam no campo da sustentabilidade.