SÃO PAULO, SP E BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Uma força-tarefa com 1.400 agentes cumpriu nesta quinta-feira (28) mandados de busca, apreensão e prisão em empresas do setor de combustíveis e do mercado financeiro que têm atuação nesse segmento e são utilizadas pelo PCC (Primeiro Comando da Capital). A meta é desarticular a infiltração do crime organizado em negócios regulares da economia formal.
Batizada de Carbono Oculto, é a maior operação contra o crime organizado da história do país em termos de cooperação institucional e amplitude, segundo a Receita Federal. Mira mais de 350 alvos, pessoas físicas e jurídicas que são suspeitos de crimes contra a ordem econômica, adulteração de combustíveis, crimes ambientais, lavagem de dinheiro, fraude fiscal e estelionato. Os agentes foram a campo em oito estados -São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Paraná e Santa Catarina.
Até o início da tarde, apenas 6 dos 14 alvos das operações foram presos. O diretor-geral da Polícia Federal, Andrei Rodrigues, afirmou que há suspeita de um possível vazamento das operações.
“De fato merece atenção que há 14 mandados de prisão e só seis foram encontrados. Não é uma estatística normal das operações da Polícia Federal, portanto, com o retorno das equipes que vão às residências, e precisam relatar o que foi encontrado, vamos ter mais elementos para dizer, ou inferir, que possa ter havido vazamento. Nessa hipótese, nós vamos fazer investigação para apurar se houve”, disse.
A fintech BK Instituição de Pagamento S.A., também conhecida como BK Bank, foi um dos principais alvos da operação.
Segundo a Receita Federal, a fintech atuaria como banco paralelo da organização e teria movimentado sozinha R$ 46 bilhões não rastreáveis de 2020 a 2024. Abarcando um período maior, a apuração da PF, por sua vez, afirma ter identificado R$ 68,9 milhões movimentados em contas na BK Bank entre janeiro de 2020 e agosto de 2025.
A reportagem não localizou os responsáveis pela empresa até a publicação deste texto.
A Reag Investimentos, uma das maiores gestoras independentes -ou seja, sem ligação com um banco- do país também entrou na mira da força-tarefa.
Os agentes chegaram à sede da empresa na alameda Gabriel Monteiro da Silva, na zona oeste da capital, nas primeiras horas da manhã. Também estiveram em outras administradoras em três endereços da avenida Faria Lima, que concentra as empresas financeiras do Brasil.
A Reag confirmou a operação e disse que está colaborando com a investigação. As ações da empresa caíam mais de 12% no Ibovespa nesta quinta em virtude da operação.
Como a Folha de S.Paulo demonstrou em reportagem recente, a entrada de facções criminosas na estrutura econômica de empresas já preocupa grandes companhias, gestoras de fundos e até investidores estrangeiros. Segundo as investigações que culminaram com a operação desta quinta, o PCC praticamente sequestrou o setor de combustíveis. A avaliação das autoridades é que quem quiser entrar nesse mercado fazendo tudo certo não tem condições de concorrer e sobreviver.
Apurou-se que a organização criminosa trabalha com metanol, nafta, gasolina, diesel e etanol. Controla elos da estrutura portuária, a formulação e o refino. Tem frota para transporte e distribuição, postos de abastecimento e, inclusive, loja de conveniência.
A força-tarefa informou que nas diferentes redes investigadas foram encontradas irregularidades no fornecimento de combustível em mais de 300 postos. Em bombas viciadas, os consumidores pagavam por um volume inferior ao informado ou por combustível adulterado, fora das especificações.
A Receita Federal apurou que mil estabelecimentos vinculados à facção movimentaram R$ 52 bilhões entre 2020 e 2024.
Para controlar o caminho do dinheiro nas operações, o PCC criou uma estrutura complexa e profissional, com corretora, administração de tipos variados de fundos, incluindo multimercados e imobiliário, além de fintechs, que podem até ter suas próprias maquininhas. Apurou-se que em alguns casos a facção comprou a instituição financeira já estabelecida no mercado por meio de fundo de participação.
O PCC também passou a usar não apenas uma fintech por operação, mas várias delas interpostas -o dinheiro vai passando de uma para outra como alternativa para impedir o rastreamento. Foi identificado também o uso da conta bolsão, que centraliza múltiplos depósitos, de fontes distintas, para ocultar a origem do dinheiro. Completamente sem transparência, a sistemática limita o acompanhamento do fluxo de transações.
Questionado, o ministro Fernando Haddad (Fazenda) afirmou que as fintechs serão enquadradas formalmente como instituições financeiras pela Receita
“A partir de amanhã, a Receita Federal enquadra as fintechs como instituições financeiras”, afirmou o ministro. “[Elas] terão que cumprir rigorosamente as mesmas obrigações que os grandes bancos. Com isso, aumenta o potencial de fiscalização da Receita e a parceria da Receita com a Polícia Federal para chegar nos sofisticados esquemas de lavagem de dinheiro que o crime organizado tem utilizado.”
O ministro afirmou que será divulgada uma nova instrução normativa da Receita. Com o enquadramento, o órgão terá mais facilidade de identificar movimentações financeiras atípicas e denunciar possíveis esquemas de lavagem de dinheiro à Polícia Federal.
Foi identificado que essa bancarização do crime no mercado interno não apenas reduziu o uso de dinheiro em espécie mas também do paraíso fiscal fora do país e abriu espaço para a diversificação de investimentos.
O PCC também constitui patrimônio e lava dinheiro com debêntures e ações -ou seja, o recurso vem de atividade ilícita, mas se soma ao rendimento proveniente da atividade lícita na economia formalizada.
Pelas estimativas dos investigadores, o conjunto de negócios que foi alvo da operação nesta quinta movimentou cerca de R$ 30 bilhões para o crime organizado. Os agentes têm mandados para bloquear R$ 1,4 bilhão.
Segundo a Receita Federal, havia uma lógica. As operações financeiras realizadas por meio de instituições de pagamento (fintechs), em vez de bancos tradicionais, dificultavam o rastreamento dos valores transacionados. Por fim, o lucro auferido e os recursos lavados do crime eram blindados em fundos de investimentos com diversas camadas de ocultação de forma a tentar impedir a identificação dos reais beneficiários.
Com sede em Barueri (SP), a fintech é apontada pelos investigadores como peça central na engrenagem de lavagem de dinheiro e ocultação patrimonial ligada ao desvio de metanol e à adulteração de combustíveis.
Segundo documentos judiciais e fontes ligadas à investigação, a BK Bank ofereceria a estrutura necessária para que empresas de fachada controladas pelos núcleos criminosos movimentassem recursos sem transparência.
A Justiça determinou o bloqueio de todos os valores mantidos pelos investigados na BK, além da preservação de extratos, contratos e cadastros de clientes. A instituição deverá entregar em até 30 dias os registros de movimentação financeira referentes ao período de 2020 a 2025.
Para os investigadores, a atuação da BK Bank ilustra como instituições de pagamento se tornaram ferramentas estratégicas na “bancarização do crime”. A opacidade permitida por esse modelo de operação teria garantido às quadrilhas um meio eficiente de simular negócios jurídicos regulares e, ao mesmo tempo, proteger o patrimônio ilícito de confisco.
A força-tarefa também investiga os ativos do Grupo Mourad, uma empresa atuante em toda a cadeia do setor de combustíveis -de usinas sucroalcooleiras a lojas de conveniência. Essa holding mantinha relações com membros conhecidos do PCC, segundo os investigadores, e é suspeita de sonegação de impostos e lavagem de dinheiro, de acordo com pedido de busca de provas do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP).
Pessoas associadas ao grupo Mourad, presidido por Mohamad Hussein Mourad, mantinham investimentos em fundos administrados por sete gestoras.
A família Mourad concentrava a maior parcela de seus investimentos na Trustee DTVM, também alvo da operação. Primos e irmãos de Mohamad detinham cotas em 13 fundos de investimentos sob gestão da Trustee DTVM, nos mercados imobiliário e de ações.
Procurada, a Trustee DTVM não respondeu até a publicação desta reportagem.
A investigação também cita nominalmente a atuação do sócio da Trustee DTVM Artur Martins de Figueiredo, que também é sócio do Banvox. Artur Martins de Figueiredo tampouco respondeu às mensagens da reportagem.
O Banvox gere, junto com a Reag Investimentos, um fundo imobiliário que recebeu imóveis da companheira de Mohamad, Silvana Correa.
A investigação também alcança o Banco Genial. A instituição é a administradora do Radford Fundo de Investimento Multimercado Crédito Privado – Responsabilidade Limitada, citado em uma exceção de indisponibilidade de bens, sugerindo que a retirada de valores da Usina Itajobi -uma das usinas adquiridas pelo grupo Mohamed- ocorreu por meio deste fundo.
Em nota, o Banco Genial se diz surpreso e indignado ao ver seu nome mencionado em notícias relacionadas à Operação Carbono Oculto. A instituição afirma que “tomou conhecimento do assunto unicamente pela imprensa e, até o presente momento, não recebeu qualquer notificação oficial sobre a existência de procedimentos investigativos que a envolvam, seja direta ou indiretamente”.
Também foi apurado que o interesse do PCC em ocupar posições na matriz energética brasileira atingiu a produção de álcool combustível. As investigações concluíram que a facção chega a comprar usinas. Outro método é colocar dinheiro para fazer a recuperação de negócios em dificuldade e assumir a operação, mas sem trocar a titularidade -o quadro societário ainda exibe o mesmo dono de sempre.
Ampliaram também a presença na importação de insumos. Entre os alvos citados na operação está o porto de Paranaguá, no Paraná. As investigações identificaram que ele serve de porta de entrada para a importação de metanol voltado a atividade ilícita.
O produto não é entregue aos destinatários indicados nas notas fiscais e, desviado, segue para distribuidoras e postos, onde é utilizado para adulterar combustível.
O metanol é um solvente industrial e matéria-prima da produção de formol, inflamável e tóxico, mas tem características de combustível. O transporte clandestino, com documentação fraudulenta, além de criminoso, é um risco à segurança nas estradas.
Entidades representativas do setor de combustíveis declararam apoio à operação nesta tarde. “O combate às práticas ilícitas é fundamental para proteger consumidores, garantir a arrecadação de tributos, fortalecer a confiança dos investidores e assegurar um ambiente de negócios transparente, que valorize empresas idôneas e inovadoras”, afirmaram, em nota.
O texto é assinado pelas associações Bioenergia Brasil, ICL (Instituto Combustível Legal), Sindicom (Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e de Lubrificantes) e Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia.
“A operação, que dá continuidade a outras medidas já executadas pelo governo paulista -como a responsabilidade solidária dos postos de combustíveis- garante a ordem e a segurança necessárias aos cidadãos de bem”, continuam as entidades.
Com um trabalho conjunto que mobilizou autoridades por quase dois anos, a força-tarefa reúne agentes do Ministério Público nos diferentes estados, por meio do Gaeco (Grupo de Atuação Especial do Crime Organizado), o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e a Receita Federal do Brasil, além das polícias Civil e Militar, da ANP (Agência Nacional de Petróleo), da PGE/SP (Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo), por meio do Gaerfis (Grupo de Atuação Especial para Recuperação Fiscal), e da Sefaz-SP (Secretaria de Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo).
Além das medidas criminais, o Cira/SP (Comitê Interinstitucional de Recuperação de Ativos do Estado de São Paulo) vai atuar para bloquear bens suficientes para recuperar o tributo sonegado, estimado inicialmente em R$ 6 bilhões.