SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O sucesso de “Impostora” deu liberdade a R.F. Kuang. “Depois de ter feito um livro que vendeu muito, posso voltar às histórias esquisitas”, celebra a escritora, em entrevista à Folha de S.Paulo por videochamada.

Com 1 milhão de cópias vendidas em inglês, o romance anterior tece uma sátira feroz do mercado literário. Já “Katábasis”, que chega ao Brasil nesta semana, retoma os universos fantasiosos que consagraram a autora na trilogia “A Guerra da Papoula” e em “Babel”, vencedor do prêmio Nebula em 2022.

“Eu me pergunto qual história leria mesmo se fosse a única pessoa no mundo interessada nela”, diz a autora sobre como se relaciona com um público que acabou transformando sua obra em best-seller. “Mas agora sei que existem outros nerds no mundo.”

Kuang afirma ter uma vida dupla. Enquanto publicava seus romances, completou dois mestrados nas universidades de Cambridge e Oxford, no Reino Unido, e entrou no doutorado em Yale, nos Estados Unidos. E a dualidade faz parte da sua personalidade.

Nascida em 1996 na cidade de Guangzhou, na China, Rebecca Kuang se mudou para o Texas ainda criança. Devorar histórias foi sua forma de assimilar a cultura do novo país. “Livros são como refeições. Não passo semanas lendo a mesma coisa. Leio o mais rápido possível”, diz ela, se divertindo.

No momento, ela elabora uma dissertação sobre literatura sino-americana —e “Katábasis” foi a forma de expurgar a tensão das universidades. “O ambiente acadêmico pode ser bem ridículo. Usei um veículo ficcional para processar tudo aquilo.”

Na mitologia grega, “katábasis” significa descida ao submundo. E na obra, dois estudantes que cursam pós-graduação em magia comem o pão que o diabo amassou pelos “oito tribunais do inferno” em busca de seu orientador, morto em um acidente de laboratório em Cambridge.

Conforme se avança nas 480 páginas, vão ficando claros os traumas dos protagonistas, que viviam situações infernais no mundo dos vivos. O enredo com ares góticos se vale de um caldeirão de referências da literatura, da filosofia e até do cinema —Kuang bebeu do filme “O Menino e a Garça”, de Hayao Miyazaki, para compor os cenários surrealistas da história.

“A magia é quase como física teórica”, diz a autora sobre o enredo do livro. “É um campo difícil, que poucas pessoas estudam e cujas implicações no nosso cotidiano não são claras. Eles são como acadêmicos inúteis estudando algo com que ninguém se importa.”

Para conceber o sistema mágico do romance, ela recorreu aos colegas do marido, doutorando em filosofia no Massachusetts Institute of Technology, o MIT. Na “festa do paradoxo”, por exemplo, ela os convidava para levar uma ideia de feitiço baseado em jogos de lógica. “Percebi que todo mundo viria se você desse comida e bebida de graça para acadêmicos apresentarem suas pesquisas.”

À medida que os desafios do submundo vão ficando mais difíceis, os personagens repensam a jornada. Presos na eternidade, os ex-inimigos percebem que têm que se unir para sair dali. Como o labirinto de Escher estampado na capa, o inferno é como um quebra-cabeça onde as coisas permanecem sempre as mesmas.

“Quando eu era criança, diziam que o paraíso era o lugar onde as pessoas poderiam comer bolo para sempre. Mas e se eu cansasse de bolo?”, lembra a escritora, afirmando que essa questão a acompanhou pela vida adulta —a imortalidade provavelmente tornaria a vida sem graça.

Aos poucos, o livro dá pistas do período em que se passa no mundo terreno. John Lennon acaba de morrer e as bandas do momento eram Talking Heads e Iron Maiden. Ou seja, são os anos 1980, e a escolha não foi à toa.

Fora a ausência de smartphones —”arruínam o romance e as relações humanas”—, Kuang quis abordar a era específica “da ascensão do neoliberalismo, época de Reagan e Thatcher, um momento em que a cultura se afastava das lutas por justiça racial e negava a noção de opressão estrutural”.

A protagonista, Alice Law, critica o movimento das mulheres e acredita na meritocracia. “Nesta visão de mundo, mulheres acreditam que são culpadas por não ganharem o mesmo salário que os homens. Elas simplesmente não são boas o bastante.”

A todo momento, a personagem cria desculpas para o comportamento abusivo do orientador. Por meio de flashbacks, quem lê passa a entender a complicada relação entre professor e aluna. E, pela primeira vez na obra da autora, os personagens falam sobre sexualidade.

As situações de violência psicológica na academia, contudo, são totalmente ficcionais. “Tive sorte, pois tenho mulheres não brancas como orientadoras, mas esse tipo de dinâmica abusiva ainda é presente nas faculdades”, afirma Kuang.

“Eu sou exemplo do que é possível conquistar quando se tem professores que apoiam você. Faz uma diferença enorme estar rodeada de pessoas inspiradoras em vez de conviver com alguém egocêntrico, um predador.”

Há três anos, ela mesma passou a dar aulas para alunos da graduação. No início, achou estranho pela pouca diferença de idade, mas logo se acostumou com a posição. “É um dos meus sonhos continuar dando aula. Só que jovens de 20 e poucos anos podem ser cruéis. Eles me chamam de velhinha, mas me escutam.”

Afinal, ela não completou nem 30 anos ainda. Mesmo assim, segundo a editora Intrínseca, já vendeu 115 mil livros no Brasil. Todos terão adaptações televisivas, sem a participação de uma autora que fiz preferir “a autonomia de escrever um livro” à colaboração com a indústria audiovisual. “Katábasis” vai sair pelo Amazon Prime Video numa adaptação de Angela Kang, roteirista da série “The Walking Dead”.

O próximo livro, “Taipei Stories”, já está pronto. E Kuang diz acreditar que vai ficando melhor no seu ofício com o tempo. Até “Katábasis”, por exemplo, suas obras colocavam a imigração e a identidade sempre em primeiro plano.

No novo livro, a origem chinesa da protagonista é um detalhe da sua personalidade. “É algo que ajuda a guiar a forma como ela enxerga o mundo, não algo que a define constantemente. Se o personagem fosse branco, seria esquisito vê-lo declarando sua branquitude a todo instante.”

“Meu trabalho é refletir o mundo, então fico cada vez mais afiada”, diz a jovem. “Eu era mais dramática, achava que cada frase deveria ser escrita em neon. Aprendi a ser sutil.”

KATÁBASIS

– Preço R$ 69,90 (480 págs.); R$ 46,90 (ebook)

– Autoria R.F. Kuang

– Editora Intrínseca

– Tradução Marina Vargas