SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O auditor fiscal Artur Gomes da Silva Neto, apontado como cabeça de um suposto esquema bilionário de propinas e créditos de ICMS irregulares envolvendo servidores da Sefaz-SP (Secretaria da Fazenda do Estado), teria se aproximado da Prefeitura de Ribeirão Pires, oferecendo consultoria tributária para aumentar a arrecadação do município. É o que apontam documentos analisados pelo MP-SP (Ministério Público de São Paulo) na Operação Ícaro aos quais a reportagem teve acesso.
De acordo com as investigações, os contatos com a cidade da Grande SP teriam ocorrido em 2020 e em parceria com Celso Éder Gonzaga de Araújo -que também está preso pela Ícaro- por meio de propostas de recuperação de créditos tributários, um modelo de contrato em que consultores recebem um percentual sobre valores supostamente recuperados para os cofres públicos.
Paulo Cunha Bueno, advogado de Artur Gomes da Silva, afirma que a defesa não tem conhecimento desse suposto documento, visto que os autos das cautelares de busca e apreensão ainda estão sob sigilo.
Procurada por email às 14h26 de terça-feira (26), a defesa de Araújo não se manifestou até a publicação desta reportagem.
A Prefeitura de Ribeirão Pires afirma que desconhecia os vínculos empregatícios de Silva Neto e que, “em momento algum, houve qualquer contratação de serviços de consultoria tributária por parte dos servidores citados na Operação Ícaro”.
“Na ocasião, o Sr. Artur Gomes da Silva apresentou apenas uma empresa de software para levantamento de valores tributários, sem que houvesse qualquer tratativa formal ou assinatura de contrato”, diz, em nota.
Se comprovada, a atuação do auditor fiscal em negociações para Ribeirão Pires enquanto servidor da Sefaz-SP será irregular, segundo especialistas ouvidos pela reportagem, uma vez que a legislação veda o uso da função pública para ganhos privados paralelos.
O “Projeto Ribeirão Pires” é como teria sido chamado o plano da consultoria tributária que Celso Éder Gonzaga de Araújo teria enviado por email para Silva Neto, com uma apresentação em Power Point anexada sobre como funcionaria o serviço, apontam os documentos obtidos pelo MP-SP.
Ainda segundo a investigação, o projeto incluiria a estruturação e a monetização da Dívida Ativa de Ribeirão Pires, a detecção de ativos e identificação de recursos em empresas do governo, e estudos tributários para otimizar o perfil de arrecadação e gerenciar a renúncia fiscal. Além disso, apontam os documentos, prometeria a estruturação financeira para PPPs (parcerias público-privadas), tudo sob uma “visão horizontal” com decisões consolidadas por auditores e contadores.
Os resultados financeiros esperados seriam bastante expressivos, de acordo com os investigadores, com uma recuperação estimada de ISS (Imposto sobre Serviços) de aproximadamente R$ 83 milhões, além de uma estruturação de caixa de cerca de R$ 25,5 milhões e créditos monetizáveis da Dívida Ativa em torno de R$ 28,4 milhões.
Para o MP-SP, a colaboração entre um auditor fiscal da Receita estadual e um indivíduo com histórico criminal para captar um município como cliente levanta suspeitas sobre a finalidade e a legitimidade da proposta. As investigações vão apurar se foi uma possível oportunidade de negócios ilícitos sob o pretexto de consultoria.
À reportagem a Prefeitura de Ribeirão Pires afirma que “todas as contratações de serviços tributários são realizadas mediante processo licitatório rigoroso, com ampla publicidade e transparência, em total conformidade com a legislação vigente, garantindo segurança e lisura em todos os procedimentos”.
Ribeirão Pires é a cidade onde Silva Neto morava até ser preso e que abriga a consultoria Smart Tax, que foi contratada pela Fast Shop e pela Ultrafarma para lhe prestar serviços tributários e é apontada pela Operação Ícaro como beneficiária de propina paga por grandes varejistas ao auditor para a manipulação de créditos de ICMS.
A Fast Shop afirma que está colaborando integralmente com as autoridades. A Ultrafarma, por meio do escritório Warde Advogados, não se manifestou até o momento.
A Smart Tax está registrada no mesmo endereço da professora aposentada Kimio Mizukami da Silva mãe de Silva Neto. Ela figura formalmente como sócia da consultoria citada nas investigações. A disparada do patrimônio de Kimio em apenas dois anos foi o pontapé inicial da Ícaro.
A mãe de Silva Neto também aparece como uma das sócias do Dac Bank, ao lado de Celso Éder Gonzaga de Araújo. A empresa está registrada na Junta Comercial de São Paulo em 2023 com capital social de R$ 3,5 bilhões, mas sem registro no Banco Central.
A reportagem não localizou a defesa de Kimio.
Segundo o diretor de assuntos jurídicos do Sinafresp (sindicato dos agentes fiscais de renda de São Paulo), Jean Henrique Ferreira, do ponto de vista legal, a atuação de auditores fiscais junto a outros órgãos públicos só é legítima quando realizada de forma oficial, por meio de convênios ou termos de colaboração entre administrações tributárias devidamente celebrados. Fora desse escopo, qualquer atividade individual configura desvio de conduta.
O tributarista Marcelo John, do Schiefler Advocacia, afirma que o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo já proíbe o servidor de exercer, mesmo em horário livre, função em instituições que mantenham relações com o governo em matérias ligadas à sua área de atuação.
Segundo o advogado, há ainda um decreto estadual que regulamenta conflitos de interesse no serviço público paulista e reforça esse impedimento ao vedar a prestação de serviços, ainda que em caráter eventual, a entidades sujeitas à fiscalização ou regulação pelo órgão ao qual o agente está vinculado.
“A prestação de consultoria para outro órgão público que poderia estar sujeito à fiscalização do auditor enseja um claro conflito entre o interesse público de fiscalização e o interesse privado do auditor em ser remunerado”, afirma John.
Segundo ele, a conduta pode ser enquadrada como ato de improbidade administrativa, já que a lei tipifica expressamente como improbidade o exercício de consultoria ou assessoramento em favor de quem tenha interesse suscetível de ser atingido pelas atribuições do agente público.
Para o advogado do Schiefler Advocacia, a ausência de menção específica a “órgãos públicos” em normas anteriores abriu margem para interpretações que tentavam justificar esse tipo de atuação, brecha agora limitada pela regulamentação recente.
“Só em 2025 o estado criou o Sistema Eletrônico Paulista de Conflitos de Interesses [SPCI], que permite ao servidor consultar previamente a Administração sobre situações de possível incompatibilidade. Antes disso, não havia mecanismos claros de controle”, diz John.
O criminalista Anderson Almeida diz que, enquanto a Lei de Conflito de Interesses é clara para altos cargos, muitos estados e municípios não têm regulamentações específicas para auditores fiscais, o que pode abrir brechas para irregularidades.
“Há também interpretações divergentes sobre o que constitui ‘atividade incompatível’ com o cargo, sobretudo quando a consultoria é prestada a outro órgão público, não a particulares. Além disso, a baixa fiscalização interna, somada à ausência de mecanismos de transparência que obriguem a divulgação de vínculos paralelos de servidores, cria um espaço cinzento que pode ser explorado sob a justificativa de ‘atividade técnica acessória'”, afirma Almeida.
Silva Neto está preso desde o dia 12 de agosto, quando foi deflagrada a Operação Ícaro, que levou também à prisão o empresário Sidney Oliveira, dono da rede de farmácias Ultrafarma, e o diretor estatutário do grupo Fast Shop Mário Otávio Gomes. Eles foram soltos sob medidas cautelares, como uso de tornozeleira, e fiança -suspensa posteriormente até o julgamento do caso.
As investigações do MP-SP seguem em andamento pelo Gedec (Grupo de Atuação Especial de Repressão aos Delitos Econômicos). Os acusados poderão responder por crimes tributários, lavagem de bens e valores e organização criminosa, cujas penas somadas ultrapassam dez anos de prisão.
Segundo o MP-SP, o esquema tinha duas etapas. Na primeira, os servidores suspeitos de corrupção agiriam para acelerar a emissão de créditos tributários a que empresas tinham direito.
Na segunda, o cálculo dos créditos tributários devidos seria adulterado e auditores fiscais apresentariam valores inflados, ainda de acordo com a apuração.
O escândalo bilionário forçou governo paulista a reformular controle do ICMS e abrir um processo interno de investigação.