SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Marvada Carne”, lançado originalmente em 1985 e que reestreia nesta quinta-feira em cópia remasterizada, foi um dos últimos filmes a revisitar a rica saga do caipira brasileiro, de que se tem notícia desde 1931, quando “Acabaram-se os Otários” inaugurou a era do cinema sonoro brasileiro.
Data também de 1931 “Reinações de Narizinho”, primeiro livro infantil da saga caipira de Monteiro Lobato, que ali reúne também figuras do folclore brasileiro, que ressurgiriam 20 anos depois em “O Saci”, de Rodolfo Nanni (cuja morte aos 100 anos, em 1º de agosto, passou injustamente em branco), mais ou menos ao mesmo tempo em que surgia Mazzaropi.
Passemos pelos filmes caipiras dos anos 1970, como “Luar do Sertão”, de Oswaldo de Oliveira. Foi no fim da década, quando Mazzaropi fazia seus últimos filmes, Nelson Pereira dos Santos (que foi assistente de direção de “O Saci”) lançou-se no gênero, trazendo Tonico e Tinoco para seu “Estrada da Vida”, de 1979.
É quase certo que o achado de Nelson tenha marcado André Klotzel, que em 1985, há exatos 40 anos, faria “A Marvada Carne”. O Brasil já se tornara um país urbano. Por isso é mais ou menos um metacaipira o que encontramos no filme de Klotzel, com personagens saídos mais da tradição e da imaginação do que de alguma realidade.
Isso não impediu o cineasta, então estreante, de fazer a incursão brilhante a um mundo em que imaginação e realidade se cruzam todo o tempo: o caipira e o curupira, o santo casamenteiro e o “coisa ruim”, se encontram e se cruzam todo o tempo.
O filme afirmou Klotzel como, provavelmente, o talento mais original de sua geração. Seus filmes posteriores confirmariam esse gosto por trazer o fantástico ao cotidiano e vice-versa.
Não importa muito a história, em que o caipira Quim (Adilson Barros), em busca de carne de boi para comer e de uma companhia com que viver, topa com a jovem Carula (Fernanda Torres), que vive em busca de um marido.
O certo é que dali decorre a aventura cômica em que se encontram suavemente a fome, o folclore, o pão-durismo crônico do pai de Carula (Dionísio Azevedo) e sua mulher (Geny Prado, tantas vezes a mulher de Mazzaropi em seus filmes). É a leveza e o humor com que as figuras interioranas e suas mitologias são aos poucos conduzidas à cidade grande, onde o filme deverá terminar.
Hoje, 40 anos depois, vale a pena observar que Klotzel de fato se afirmou como o principal autor de cinema da geração dos anos 1980, intermediária entre os anos do cinema novo e o século 21.
O esforço técnico chama a atenção em praticamente todos os seus aspectos, da fotografia (Pedro Farkas) à montagem (Alain Fresnot) e à direção de arte (Adrian Cooper), sem contar o notável som direto de Walter Rogério.
Esse conjunto foi produzido por Claudio Kahns que trouxe Fernanda Torres para fazer uma inesquecível Carula. É com certeza uma das melhores atuações da hoje consagrada atriz. Ali fazia seu segundo papel de destaque, o primeiro desde a espantosa estreia em “Inocência” (1983), de Walter Lima Jr. Agora, trocava o papel de heroína trágica dos tempos do Império pela caipira sapeca que reza em tempo integral a santo Antônio por um noivo e vê a chegada de Quim ao lugar como um milagre. A atriz está tão bem que é difícil pensar que existe uma atriz ali: só se vê a personagem.
É preciso lembrar que o filme é de 1985, de um período conturbado da vida nacional, em que o retorno à democracia coincidia com uma inflação horrível e saques em supermercados eram coisa quase comum.
Quer dizer, o assunto central do filme, fora o casamento a vontade de comer carne de vaca do caipira, era bastante atual. Tão atual que mal se percebia o quanto é importante para o filme, em que a desenvoltura e a sutileza com que consegue passar da abordagem dos nossos personagens mitológicos à fome também não podem passar em branco para o espectador contemporâneo.
Apesar do desenvolvimento muito agradável e da fluência, este filme memorável cai um pouco nos minutos finais, o que talvez se possa atribuir à falta de dinheiro da produção. Os tempos não eram fáceis.